A sociedade cria os monstros que se voltam contra ela no futuro, mas não tem coragem de assumir responsabilidade alguma quando um destes monstros comete um ato de violência – e é por isso que muitas pessoas frequentemente insistem em acusar um filme, um jogo ou uma história em quadrinhos de “incitar a violência”: é muito mais fácil jogar a culpa para cima de uma obra específica do que se reconhecer como parte de um problema maior. Dito isso, eu não duvido que, mais cedo ou mais tarde, algum maluco promova uma barbaridade e alegue que Coringa o encorajou a fazê-la; o único detalhe é que, se isso acontecer, o filme em si não passará de uma desculpa usada pelo indivíduo, não devendo ser culpabilizado por quaisquer tragédias que possam ocorrer. Afinal, o que este novo trabalho de Todd Phillips faz não é incentivar a violência, mas retratar uma doença crônica da nossa sociedade – e isto não poderia ser mais óbvio.
Obviamente contando a origem de um dos vilões mais icônicos da História dos quadrinhos, o roteiro escrito por Scott Silver e pelo próprio Phillips já começa nos atirando na degradante Gotham de 1981, que, mergulhada em uma recessão econômica que leva o governo a cortar uma série de verbas públicas, presencia um aumento significativo na criminalidade e na desigualdade socioeconômica. É neste contexto que somos apresentados a Arthur Fleck: portador de uma doença que constantemente lhe provoca gargalhadas não intencionais, o sujeito trabalha como palhaço de rua, vive cuidando da mãe doente, se interessa pela vizinha Sophie, sonha em se apresentar no talk-show do comediante Murray Franklin e tenta iniciar uma carreira no stand-up, ao passo que visita semanalmente uma psicóloga para tentar manter seus problemas mentais sob controle. Após ser pisoteado pelas pessoas ao seu redor, no entanto, Arthur aos poucos se volta contra a sociedade e assume uma identidade nova – e inspirando, com isso, uma revolta popular contra a elite encabeçada pelo candidato a prefeito Thomas Wayne.
Como podem perceber, Coringa divide uma série de similaridades temáticas/narrativas com Taxi Driver e O Rei da Comédia, não sendo surpresa, portanto, que Todd Phillips preste diversas homenagens às duas obras (a mais óbvia está no fato de Robert DeNiro assumir o papel antes ocupado por Jerry Lewis, mas há também o táxi que atropela Arthur em dado momento, o instante em que ele aponta uma arma para uma televisão e, principalmente, a imagem que encerra a projeção e que remete a uma gag envolvendo Rupert Pupkin). O que não significa, contudo, que o trabalho de Phillips se limite a referenciar filmes melhores, empregando a memória pontual daqueles filmes para pintar um contexto que faça sentido nesta nova trama – e criando, com isso, uma atmosfera sombria, pessimista e que não depende da existência do Batman para se sustentar. Aliás, a autonomia imposta pelo diretor é tão eficiente que os momentos mais frágeis do longa acabam sendo justamente aqueles que se sentem obrigados a acenar para a mitologia do Homem-Morcego, soando como meras imposições contratuais.
Fotografado por Lawrence Sher (que colaborou com Phillips na trilogia Se Beber, Não Case!) de maneira sempre triste e melancólica, Coringa emprega a semiótica para conferir uma aura trágica ao personagem-título, fazendo questão de sempre mostrá-lo em ambientes escuros, dominados por sombras e naturalmente capazes de projetar hostilidade – e só isso dificulta uma possível glamourização da imagem do Coringa (a não ser quando o próprio se enxerga numa situação glamourosa, como ocorre na cena em que dança numa escadaria). Além disso, o designer de produção Mark Friedberg cumpre bem o pré-requisito de emular os figurinos, os penteados e o estilo estético do final dos anos 1970/início dos anos 1980 (o que também se deve ao ótimo trabalho do figurinista Mark Bridges, parceiro habitual de Paul Thomas Anderson), mas também merece pontos por conferir a Gotham uma aparência que acompanha a decadência psicológica do protagonista, começando sobrecarregada de tons cinzentos e sendo progressivamente invadida por cores mais intensas. Já a irlandesa Hildur Guðnadóttir se destaca ao compôr uma trilha tão perturbada quanto o próprio Arthur Fleck, demonstrando inteligência ao investir em violoncelos inquietantes, propositalmente desconfortáveis e que ajudam a construir uma atmosfera inequivocamente fúnebre (mesmo pecando ao “comentar” demais alguns momentos que talvez se beneficiassem do silêncio).
Mas quem mais chama a atenção é mesmo Joaquin Phoenix, que, mesmo representando a enésima versão de um personagem já interpretado inúmeras vezes, certamente posiciona seu Coringa como um dos melhores já apresentados até hoje. Denotando o desgaste de Arthur Fleck através de seu corpo assustadoramente magro (beirando o esquelético), Phoenix transforma sua risada em uma forma de expressar não apenas divertimento, mas também amargura, tristeza e até mesmo raiva – algo que se torna particularmente notável na cena ambientada num metrô, na qual o choro desesperado de Arthur surge em meio a gargalhadas que nada têm a ver com alegria. Aliás, a dificuldade que o protagonista tem de interagir com a sociedade se reflete em sua ingenuidade, sendo curioso o fato de exibir a postura de uma criança orgulhosa ao receber um elogio (imaginário) de Murray, por exemplo – não é à toa que, no terceiro ato, o tom de voz adotado por Robert DeNiro soa como o de um adulto dando bronca em uma criança, ao passo que Phoenix soa como… a criança em si. Mas não é só: a busca por aceitação é parte integral da persona de Arthur; algo que o ator demonstra muitíssimo bem na sequência em que vai a um clube de comédia e gargalha junto à plateia (enquanto o faz, ele observa atentamente às outras pessoas ao seu redor, como se quisesse analisar o comportamento delas para ter certeza de que está conseguindo emulá-lo direitinho). Para completar, é interessante como a postura de Arthur muda completamente quando enfim se transforma no Coringa definitivo, deixando de ser arqueado e desajeitado para se tornar um cara confiante e cheio de si.
Não é à toa que muitos podem acusar Coringa de justificar – ou mesmo glorificar – as ações de seu personagem-título, já que os motivos que levam Arthur Fleck a se tornar o clássico vilão dos quadrinhos são plantados com calma ao longo do filme inteiro. Neste sentido, é admirável como Todd Phillips consegue construir um arco bem discernido para o protagonista, fazendo questão de mostrar, por exemplo, como o acúmulo de desilusões e maus-tratos ao longo de toda uma vida podem culminar em uma tragédia que se voltará contra a própria sociedade. Aliás, de um ponto de vista puramente narrativo, Phillips demonstra elegância ao contrapôr determinadas etapas da trajetória de Arthur a fim de fazer o espectador perceber como o personagem se perdeu no meio de um longo e doloroso processo, criando, com isso, algumas rimas visuais bastante eficientes (e gosto principalmente de como a imensa escadaria percorrida diariamente por Arthur representa uma subida cansativa no início e uma descida gloriosa no final).
O que Coringa faz, portanto, é apenas mostrar para o espectador como uma sucessão de eventos catastróficos pode transformar um indivíduo em um perigo para os que estão ao seu redor – e, por mais que a sociedade insista em tratar seus malucos como meras “aberrações”, a verdade é que, quando alguém comete um ato terrível de violência, é porque algo o levou àquele extremo. (E mais uma vez: falar sobre isso não é “defender” ou “justificar” os crimes do Coringa, mas tentar entender um problema social. Tenha isso em mente antes de me mandar “adotar um bandido”, por favor.) No caso de Arthur Fleck, sua vida se resume basicamente a uma sequência interminável de pancadas que, aliadas a uma série de distúrbios psicológicos que nunca receberam a assistência necessária e que sempre atraíram humilhações a seu respeito (“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse“, registra ele em seu caderninho de piadas), resultaram em uma explosão.
Ao longo de toda a sua vida, Arthur foi violentado, insultado e ridicularizado por pessoas que se recusavam a enxergar sua doença com o mínimo de empatia – e se tem uma coisa que o talk-show de Murray Franklin comprova é que é muito mais fácil rir de alguém do que tentar entender a sua situação. Sim, Arthur é um maluco que precisa ser detido e punido pelos crimes que comete, mas também faz parte de uma tragédia social que não se resume somente a ele – afinal, suas barbaridades nada mais são do que aquilo que muitos anônimos por aí adorariam fazer, mas não têm coragem. A cada esquina, existe um Coringa esperando por um “chamado à ação” (que pode ser este filme, infelizmente). Neste sentido, a rebelião dos palhaços inspirada pelo protagonista ilustra bem o que estamos discutindo, sendo uma pena, no entanto, o fato de ser apresentada e desenvolvida superficialmente pelo roteiro, transformando-se quase em uma facilitação narrativa de vez em quando.
Importante também ao mostrar como a cultura bélica dos Estados Unidos é diretamente responsável pelas chacinas que acontecem em solo norte-americano, permitindo que armas caiam facilmente nas mãos de completos lunáticos (o que encontra ecos, por exemplo, no fato de Arthur levar um revólver carregado para dentro de um hospital infantil), Coringa é uma obra que pode, sim, ser encarada como um perigoso chamado à violência. E é, ao mesmo tempo, um retrato de como a sociedade tem o hábito de causar as suas próprias tragédias, mas se recusa a se responsabilizar por elas.