Ninguém esperava que Divertida Mente seria o que foi. Quando aquele filme chegou aos cinemas, a Pixar vinha passando por uma crise criativa tão evidente que nem o maior fã dos trabalhos do estúdio poderia negar – e foi neste período que começaram a surgir tropeços inexplicáveis como Carros 2, até hoje o pior de todos os longas produzidos pela empresa (Valente e Universidade Monstros são bacaninhas, mas nem de longe remetem à grandeza das várias obras-primas que vieram antes). Com isso, aquela produção surgiu como uma grata surpresa, reacendendo a chama do estúdio ao revelar-se o trabalho tematicamente mais ambicioso da Pixar (ao lado de Wall-E, é claro) – e poucos filmes me fizeram chorar tanto quanto os cinco minutos finais daquela obra, rivalizando, neste sentido, com o inesquecível desfecho de Toy Story 3. E é um alívio perceber que, passados nove anos desde aquele longa, este Divertida Mente 2 se revela uma continuação bastante digna, levando a imaginação e as discussões propostas pelo original a caminhos novos e eficientes.
Marcando a estreia de Kelsey Mann na direção de longas, Divertida Mente 2 já começa tomando uma decisão eficaz ao escolher se situar um tempinho após os eventos do primeiro filme: se antes Riley tinha 11 anos e enfrentava o drama de mudar de cidade e entrar numa nova escola, agora é uma adolescente de 13 que está prestes a entrar no ensino médio e que busca se enturmar com as alunas mais populares da classe. Ou seja: a mentalidade e a forma de agir/reagir da menina obviamente passam por uma drástica transformação, também conhecida como “puberdade”. Assim, os comandos dos sentimentos de Riley (numa sacada brilhante do roteiro) tornam-se excessivos, como se qualquer toque de Alegria, Tristeza, Raiva, Nojinho e Medo na mesa de controle desencadeasse a variação mais extrapolada possível de cada reação – e é esta dificuldade que as velhas emoções têm em lidar com a nova fase da garota que exige a chegada de novos membros para manejá-la melhor: a Inveja, o Tédio, a Vergonha e, claro, a Ansiedade (tem também a Nostalgia, mas ela fica quietinha no canto dela). O que as cinco integrantes originais não esperavam, porém, era que a Ansiedade conspirasse para expulsá-las da sala de controle e atirá-las nos confins da mente de Riley, manipulando-a sozinha – e é claro que o trabalho feito pela Ansiedade resulta num desastre que só piora a vida da menina, obrigando as emoções já conhecidas a correrem para voltar ao centro operacional.
Novamente criando um mundo que impressiona em sua imaginação e na riqueza de suas ideias, esta continuação é, como seu antecessor, um espetáculo visual que se mostra sempre inventivo na maneira com que “materializa” conceitos abstratos e/ou puramente psicológicos, introduzindo criações inéditas que revelam nuances novas sobre a mente de Riley (afinal, esta cresceu e, portanto, o espaço para novidades só aflorou). Umas são mais literais, como a “chuva de ideias”/“brainstorm” que surge em dado momento e que envolve de fato uma tempestade de lâmpadas caindo do céu (e que representam ideias em potencial); outras são mais elaboradas, como a ilhazinha que reúne as várias convicções/certezas da garota (que compõem sua persona, seu jeito de ser) suspensas por cabos iluminados, criando um ambiente que parece Pandora à noite. Mas a sacada mais divertida talvez seja a de retratar as fofocas que chegam para Riley através de… jornais, equiparando fofoqueiros a jornalistas (nada mais apropriado, não?).
Mas a maior novidade desta sequência, no entanto, reside na figura da Ansiedade, que é tratada pelo filme com densidade e maturidade dignas de aplausos. O curioso é que, ao contrário da abordagem conferida à Tristeza no longa anterior (que jamais era retratada como vilã), a Ansiedade é claramente posicionada como a real antagonista da trama, como um problema a ser detido/contido pelas protagonistas. Isso, contudo, não é uma escolha ruim (ou maniqueísta demais), já que faz todo o sentido: diferente da Tristeza, que é uma emoção básica que está presente desde o princípio, a Ansiedade é algo que vem do nada e começa a passar por cima de tudo – aparentemente, com um propósito que, se não é bom, ao menos é compreensível e bem-intencionado: ajudar a antecipar situações ruins que podem acontecer a Riley a fim de preservá-la delas (e, neste aspecto, é ótimo que o filme consiga posicionar a Ansiedade como antagonista sem transformá-la em vilã ou numa figura má, deixando claro que, no fim das contas, ela legitimamente deseja o melhor para Riley).
O problema – e, se você ainda não assistiu ao filme, talvez seja uma boa pular para o próximo parágrafo – é que a Ansiedade (sentimento e personagem) nunca tem soluções concretas para as projeções terríveis que levanta – e, com isso, é natural que ela termine por quebrar ainda mais Riley, criando convicções novas e distorcidas que servem apenas para destruir o pouco de autoconfiança que restava da menina. Assim, a melhor decisão que o longa poderia tomar é a de lembrar que a Ansiedade nada mais é que um acúmulo de más suposições (“e se…?”), sendo particularmente fabuloso que, em dado momento, a Alegria tente combatê-la gritando hipóteses de coisas boas que podem acontecer a Riley – e este empilhamento de receios vai crescendo e acelerando até alcançar um clímax digno dos melhores momentos da Pixar.
Com um ritmo que equilibra bem os aspectos cômicos e dramáticos da história (desta vez dando mais espaço ao bom humor e criando momentos genuinamente engraçados a partir das naturezas e personalidades dos personagens, como, por exemplo, aquele em que certo personagem saído de um videogame tenta caminhar por um cenário e acaba soando “travado” em função de seus lags/bugs), Divertida Mente 2 mantém a narrativa sempre movimentada e inspirada em cada novidade que apresenta, mesmo que, aqui e ali, o desenvolvimento da trama em si careça de frescor – e o roteiro de Meg LeFauve e Dave Holstein não tem muita parcimônia em reaproveitar alguns elementos do original, como a jornada das “emoções tendo que correr contra o tempo para voltar à sala de controle” e até um “personagem fofinho esquecido nos fundos da mente de Riley” (que, inclusive, resgata as emoções num momento muito similar àquele em que Bing Bong ajudava a Alegria a escapar de um desfiladeiro). Dito isso, sempre que o longa parece familiar demais, logo surge na tela um conceito absolutamente contagiante em sua criatividade.
Interessante ao ilustrar o amadurecimento das personagens (a Alegria e a Tristeza, em especial, já se encontram em perfeita sintonia desde o início, já que a relação turbulenta entre elas foi resolvida ao fim do primeiro filme) e ao encontrar elos coesos nas interações entre as velhas e novas emoções (faz todo o sentido, por exemplo, que a Tristeza crie intimidade mais rapidamente com a Vergonha), Divertida Mente 2 é uma continuação que expande o universo do original à medida que melhor compreende seus personagens e os sentimentos destes. Não é uma obra-prima como o longa de 2015, é verdade, mas… e daí? Nem precisava ser.
Obs.: assisti ao filme dublado, já que a cabine assim o foi. O hábito da tradução de incluir o tempo todo referências a memes e gírias do momento não poderia ser mais irritante. Uma vez ou outra, ok, até vai – e o Tédio dizer que algo é “muito cringe” até faz sentido de acordo com a personalidade do personagem, mesmo que o hype da discussão entre “boomers”, “millenials” e “geração Z” (que tomou a Internet por um tempo) já tenha passado há uns dois/três anos. De modo geral, porém, a dublagem abusa do vocabulário “interneteiro” a ponto de torná-lo insuportável, como um recurso que distrai ao chamar atenção para si em vez de ajudar a colorir o quadro geral. E o cúmulo é quando a Raiva usa a expressão “arrasta para cima” num momento que nada tem a ver e que soa forçada por simplesmente não parecer algo que aquele indivíduo, com seu jeitão particular, tenderia a diria. #xateado
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: