Não sou fã de Titane, longa de Julia Ducournau que venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2021 e, com isso, se tornou o segundo filme dirigido por uma mulher a conquistar tal proeza (o anterior tinha sido O Piano, de Jane Campion, 28 anos antes). Até considero que havia alguns elementos promissores, como a mesclagem entre o drama convencional e o horror visceral e “esquisitão”, mas no fim das contas todo este esforço resultava apenas em uma exploração sádica da violência que, para piorar, pouco ou nada desenvolvia sobre as ideias nas quais pretendia se aprofundar. Em suma: era um filme que tentava reivindicar para si o status de “malvadinho”, mas soava apenas patético no processo, como um adolescente trevoso tentando “chocar”.
Dito isso, não posso negar que Alpha, novo trabalho de Ducournau, em algum grau me surpreendeu por se revelar menos obcecado com o “choque pelo choque” do que Titane – e, ainda que continue a criar uma série de imagens grotescas e agoniantes (daquelas que levam o espectador a cobrir parte dos olhos com as mãos ao encarar a tela), ao menos desta vez estas me pareceram um pouco menos infantis em sua execução. É uma pena, contudo, que em termos conceituais as coisas não melhorem muito, já que, do ponto de vista temático, Alpha é tão perdido em seus temas, imaturo em suas “alegorias” e superficial em suas conclusões quanto seu antecessor.
Escrito e dirigido por Ducornau, o roteiro acompanha a personagem-título Alpha, uma menina de 13 anos que vive com a mãe solteira (e médica) em uma realidade em que um vírus mortal ganha o mundo e transforma todos os contaminados em mármore. Assim, quando a garota surge em casa com um “A” (em referência ao próprio nome, é claro) tatuado no braço com uma agulha improvisada, não é surpresa que a mãe vá à loucura com a hipótese da filha ter se infectado no processo. Tudo muda, porém, quando o tio de Alpha (ou seja: irmão da mãe), há muito em estado de dependência química, volta para casa e cria, com a protagonista, uma afeição mútua – até pelos problemas que, às suas próprias maneiras, ambos têm com a médica/irmã-do-tio/mãe-da-filha.
Aliás, se a primeira metade de Alpha representa uma experiência até tolerável – ou, ao menos, não insuportável como Titane –, isso se deve em boa parte à construção das personagens e às atrizes que as interpretam: a iraniana Golshifteh Farahani, por exemplo, faz um trabalho notável ao equilibrar o excesso de superproteção/controle e as paranoias destrutivas da mãe de Alpha sem nunca deixar de lado o apreço e carinho reais que mantém pela filha e, sim, pelo irmão, tornando-se trágica em função disso. E se Tahar Rahim estabelece bem a dor do tio por perceber-se no fim da linha sem deixar de ser atormentado pelos próprios demônios interiores (e vícios), é a adolescente quem se destaca ao retratar Alpha como uma menina afligida pelas dificuldades de socialização, já que a criação da mãe e as situações pelas quais passa após a tal tatuagem afastam e/ou amedrontam os colegas de escola, e ao mesmo tempo visivelmente apegada à mãe a ponto de lhe demonstrar afeto e respeito genuínos ao longo da projeção.
O problema é que praticamente todo o filme ao redor das personagens se contenta com a própria superficialidade – isto é, até desabar de vez na reta final. Em termos de discussões temáticas, em especial, fica flagrante como Julia Ducornau não tem ideia do que pretende alcançar com Alpha: a tal doença que petrifica os infectados, por exemplo, é uma alusão escancaradamente óbvia à proliferação do HIV (ao ponto de se transmitir sexualmente e fazer parte da população encará-lo como “doença de gay”), mas… por que Ducornau investe nesta alegoria? Como ela dialoga com os demais temas que a narrativa discute? O que a diretora tem a dizer sobre a AIDS (seja sobre a doença em si, sobre a maneira com que é recebida pela sociedade ou sobre o pânico moral – leia-se: homofobia – que desperta)?
Do jeito como Ducornau aborda a tal doença, deixa a sensação de que se trata nada mais do que… um artifício para criar uma ou outra sequência graficamente impactante/bonitinha/esquisitinha, aproveitando para pincelar temas soltos na esperança de fazer a obra soar “relevante” sob algum prisma. O mesmo se aplica às reações que a situação provoca no corpo de Alpha (e que a cineasta claramente tenta transformar em uma metáfora – palavrinha maldita – para a puberdade): ok, a imagem da protagonista envolta em uma mancha de sangue enquanto os coleguinhas se afastam desesperadamente pode até ser marcante por si só, mas… aonde Ducornau pretende chegar com a metáfora em si? Ela dialoga com os demais temas levantados pelo filme ou não passa de mais uma ideia solta?
Assim, Alpha parece sempre se contentar com o básico das discussões que propõe (ou melhor: “propõe”), mantendo-se num nível constantemente medíocre que, no entanto, torna-se francamente patético em seus minutos finais, quando Julia Ducornau decide concluir a trama com uma “revelação” que, além de esvaziar ainda mais o que rolou nas duas horas anteriores, é de uma infantilidade que leva o espectador a sair da sala de cinema com um gosto ainda mais amargo do que poderia supôr.
Visto no MUBI Fest.