A diferença entre sexo e gênero é definida de maneira clara: o primeiro diz respeito à condição biológica (feminina ou masculina) de cada indivíduo, ao passo que o segundo tem a ver com os papeis sociais desempenhados pela mulher ou pelo homem. No entanto, para boa parte da Sociedade, as funções de cada um ainda são baseadas única e exclusivamente em questões biológicas, custando a entender que a ideia de homens terem necessariamente pênis e mulheres terem necessariamente vagina e seios não passa de uma construção social – construção esta que, diga-se de passagem, é tão antiga que as alas mais conservadoras desta mesma Sociedade tendem a encarar qualquer tentativa de desconstrução não como uma novidade, mas como uma ameaça ao status quo. Só isto torna qualquer esforço de romper com esta percepção uma tarefa dificílima – mas ainda fundamental, já que infelizmente há várias pessoas cada vez mais interessadas em calar quem sugere começar uma discussão sobre isto.
Neste sentido, é notável que a cantora Linn da Quebrada, protagonista do documentário Bixa Travesty, se identifique não apenas como uma militante, mas como uma “terrorista de gênero”. Não à toa, seu interesse em levar o debate a lugares cada vez mais ambiciosos é exemplificado de forma perfeita pelos versos da música “Mulher”:
Ela tem cara de mulher
Ela tem corpo de mulher
Ela tem jeito
Tem bunda
Tem peito
E o pau de mulher!
Afinal, o fato de ter um pênis e dois testículos entre as pernas é o suficiente para impedir Linn (ou qualquer outra pessoa) de se considerar uma mulher? Não seria isto uma visão simplista do que significa ser uma mulher? Ou pior: não seria isto uma confusão óbvia entre “condições biológicas” e “papeis sociais”? Seja como for, o fato é que o discurso de Linn da Quebrada se revela, no mínimo, confrontador – o que é justamente a intenção da cantora: quebrar regrinhas estabelecidas pela Sociedade e mostrar que a diferença entre homens e mulheres não se resume a um pênis ou a uma vagina, abrangendo questões que vão muito além disso. A consciência e o papel social de Linn, portanto, são os únicos fatores que realmente a definem como mulher. Aliás, é fascinante – e essencial – constatar como a cantora se enxerga não como uma mulher trans, mas como uma mulher cis, alegando não saber direito o que é transfobia porque o tipo de preconceito que sofre nas ruas é… misoginia mesmo. Há, inclusive, um momento particularmente revelador no qual Jup do Bairro, parceira habitual de Linn, relata uma situação recente na qual precisou explicar para um taxista (que havia acabado de se referir a ela como “senhor”) que algumas mulheres também têm… pau.
Não que Bixa Travesty retrate a discriminação sofrida pelas protagonistas de maneira trágica ou brutal (o que, mesmo se fosse o caso, seria compreensível, já que o Brasil ainda permanece no topo do ranking dos países que mais matam LGBTQs no mundo): exibindo um senso de humor que se faz presente até nos momentos mais dramáticos de sua jornada, Linn da Quebrada consegue rir – e provocar o riso – ao falar, por exemplo, sobre um assédio que sofreu quando caminhava na rua e se deparou com homens que a xingavam de “traveco” (e sua resposta não poderia ser mais bem humorada: “Ué, eles acharam que eu estava tentando disfarçar?“). Da mesma forma, quando sua mãe sem querer se refere a ela como “ele”, o filme e a protagonista fazem questão de encarar o erro não como um ato de intolerância, mas como um engano inocente de quem ainda não se acostumou à ideia de ter uma filha em vez de um filho. Linn, por sinal, é retratada pelo documentário como um ser humano esclarecido, porém humilde o suficiente para reconhecer suas dúvidas particulares – há um momento, em especial, no qual a cantora revela hesitar em relação à possibilidade de se submeter a procedimentos cirúrgicos para aproximar seu corpo da anatomia feminina.
A eloquência de Linn, por sinal, é um atrativo à parte: se debruçando em vários monólogos que buscam desconstruir padrões bem fixos no imaginário popular e que levam o espectador a uma profunda reflexão acerca do que compreende como “feminino” ou “masculino” (isto é, caso o espectador seja tolerante o suficiente para pelo menos tentar embarcar na reflexão), a protagonista conquista a atenção do público não apenas ao falar sobre identidade de gênero, mas também ao falar sobre assuntos mais tangenciais, como o símbolo de poder e energia representado pelo… cu. (Eu, particularmente, gostaria muito de saber como Rogério Skylab reagiria a este monólogo específico.) Mas Linn vai além: logo nos primeiros minutos da projeção, a cantora já surge falando diretamente com a câmera (leia-se: com o espectador) a respeito das imposições masculinas diante do mundo e das mulheres em geral, tratando-as como subalternas e colocando-as para competir por eles. Trata-se, portanto, de um dos melhores exemplos de “quebra da quarta parede” que me recordo de ter visto nos últimos tempos, utilizando o recurso não como uma muleta narrativa, mas como uma arma usada para quebrar determinados padrões e para redirecionar os fragmentos que restaram contra seus criadores.
Intercalando sequências que se concentram apenas na vida pessoal de Linn e outras que atiram o espectador no meio de suas performances artísticas, a direção de Claudia Priscilla e Kiko Goifman faz o espectador se sentir frequentemente dominado pela potência das apresentações musicais da cantora, o que representa uma experiência fascinante por si só. Ainda assim, os momentos mais íntimos do documentário se mostram fundamentais ao trazerem uma série de conversas entre Linn, sua mãe e suas amigas que giram em torno da identidade da primeira e que, justamente por isso, explicam de onde vem as letras de suas músicas, alcançando um equilíbrio perfeito entre as imagens artística e privada da protagonista. Além disso, Priscilla e Goifman fazem questão de retratar o cotidiano de Linn da forma mais autêntica possível, adotando uma estética que não se preocupa em parecer bonitinha e que exibe uma visceralidade condizente com o dia a dia da cantora – neste sentido, é interessante que a fotografia de Karla Meneghetti deixe desfocados alguns elementos-chave de determinadas cenas e que Linn não se importe muito com os tropeços (gagueiras; palavras comidas; etc) que ocasionalmente comete em sua narração em off.
Deixando o público não familiarizado com a obra de Linn da Quebrada (como eu) interessado em correr atrás para conhecê-la o mais rápido possível, Bixa Travesty é confrontador sem apelar para táticas óbvias, revelador acerca de um monte de assuntos pertinentes sem deixar de reconhecer que talvez não tenha as respostas para todas as dúvidas do mundo e – não menos importante – capaz de fazer o espectador sair do cinema com uma sensação inequívoca de prazer sem que isto elimine o peso de suas denúncias sociais. E mais: é protagonizado por uma mulher não apenas dotada de uma consciência fascinante, mas também eloquente o bastante para transformá-la em discursos incrivelmente sedutores.
De minha parte, confesso que não tenho o hábito de aplaudir filmes. E o motivo, para mim, sempre foi muito simples: não vejo muito sentido em aplaudir um trabalho se os responsáveis por fazê-lo não puderem ouvir os aplausos. Assim, só costumo aplaudir filmes em sessões que contem com a presença da equipe encarregada de realizá-lo – a não ser que a experiência proporcionada pela obra seja transcendental o bastante para me fazer aplaudi-la sem que os artistas merecedores da ovação estejam lá para recebê-la.
Eu aplaudi Bixa Travesty. E com vontade.