É curioso pensar que, até poucas décadas atrás, as princesas da Disney se resumiam ao velho clichê da “dama em perigo”; uma visão que, no mundo de hoje, soa arcaica e antiquada a ponto de ser constantemente quebrada através das novas animações da própria Disney (e de seus “braços”, como Pixar e Lucasfilm). Em Moana, a discussão é prosseguida com uma personagem-título que não só refuta o título de “princesa” (fazendo questão de se distanciar das “donzelas à espera de um homem que possa salvá-las”) como ainda estrela atos heroicos numa sociedade que reserva as tarefas mais perigosas para os homens – e o mais interessante é que, em vez de apelar para a obviedade, o filme jamais deixa a sutileza de lado ao discursar sobre o empoderamento feminino (não é por acaso que a protagonista sempre é inferiorizada não por ser mulher, mas por ser mortal).
Dirigido por Ron Clements e John Musker (a mesma dupla por trás de A Pequena Sereia, Aladdin e Hércules), o longa é narrado em tom de lenda e revela conceitos e tramas grandiosas: quando o coração místico da deusa Te Fiti é roubado pelo semi-deus Maui, a Terra começa a ser gradualmente encoberta por sombras destrutivas nos séculos consecutivos. Mais de um milênio se passa e somos apresentados a um povo localizado numa ilha da Polinésia, onde a jovem Moana Waialiki cresce sonhando em desbravar os perigosos mares e devolver o coração a Te Fiti a fim de salvar o mundo. Depois que descobre um antigo segredo a respeito de sua cultura, ela resolve embarcar numa aventura (contrariando a vontade de seu pai super-protetor) e acaba se encontrando com Maui, unindo-se a ele em sua jornada.
Pode parecer redundante elogiar a equipe técnica de uma animação produzida por ninguém menos que a Disney em pleno ano de 2016, mas ainda assim confesso que me impressionei com as conquistas obtidas pelos animadores de Moana: preocupando-se com detalhes mínimos que vão de marcas projetadas na areia até gestos casuais (como um breve instante onde a protagonista usa as mãos para comprimir seus cabelos na altura da nuca), a produção conquista um grau de realismo espantoso graças à fluidez que existe nos movimentos dos personagens e ao impacto físico que certos eventos causam (notem as marcas que as lágrimas deixam no rosto de Moana após secarem). E se existem momentos visualmente incríveis (como aquele que traz a heroína coberta de areia), a textura das peles dos humanos criados digitalmente são quase tão convincentes quanto a umidade deixada pela água em sólidos rochosos (que, junto com folhas e plantas, quase parecem ter saído de um projeto live-action).
Em contrapartida, é interessante constatar que, apesar da natureza realista presente na movimentação dos personagens, Moana investe pesadamente em caracterizações estilizadas e que beiram o cartunesco (algo que também era feito em Os Incríveis): a forma física de Maui, por exemplo, retrata o lendário semi-deus como um indivíduo corpulento e cuja força quase se confunde com gordura – já o design da protagonista acerta ao adotar uma aparência robusta que realça a força da heroína. Por sua vez, a ótima direção de arte se destaca graças à concepção imaginativa do navio de certos piratas (que são semelhantes a cocos), à sala brilhosa e repleta de ouro em que reside um dos vilões (um ambiente que, durante a escuridão, parece ser iluminado com luz negra), à criatura feita de lava que serve como obstáculo para Moana e às cores fortes que dominam a aldeia em que ela vive. Para completar, os números musicais são sempre encantadores, funcionando especialmente em suas versões originais (minha canção favorita é How Far I’ll Go, que vem através da belíssima voz de Auli’i Cravalho).
Eficiente ao referenciar obras popularmente conhecidas (como Mad Max, Godzilla e O Hobbit: A Desolação de Smaug), Moana é hábil ao ilustrar cuidadosamente como é o funcionamento da cultura em que a heroína está inserida, mostrando de escolas até certas tradições e estabelecendo as funções que cada um tem nessa sociedade. E se a personagem-título agrada graças à sua personalidade carismática e cheia de determinação (sem contar tudo aquilo que abordei no primeiro parágrafo e o fato dela não depender de homens a todo momento; aliás, são eles que dependem mais da mulher aqui), Maui surge como um sujeito tremendamente orgulhoso de sua condição de semi-deus, o que tende a transformá-lo numa figura egocêntrica e imatura que adere a piadas divertidamente infantis (esperem até descobrir o significado de “nãote“) – mas isso não significa que ele deixa de contar com sua carga dramática, que confere densidade ao personagem a partir da segunda metade da projeção.
Por outro lado, Moana não consegue disfarçar sua premissa convencional e repleta de temas que já se tornaram batidas há muito tempo: é difícil negar que a “Jornada do Herói” (ou, neste caso, “Heroína) experimentada pela protagonista é das mais clichês, trazendo um ser humano comum e sonhador que terá de se destacar, superar seus limites e desbravar um mundo além de sua zona de conforto com o objetivo de salvar o meio em que está situado. Diga-se de passagem, é curioso que alguns elementos vistos aqui também tenham pertencido a projetos anteriores dos diretores Ron Clements e John Musker, encontrando ecos de A Pequena Sereia e Aladdin. O resultado é uma narrativa que, por mais bem-sucedida que seja, ainda soa um pouco previsível de vez em quando – e mais grave é perceber que o roteiro conta com alguns devaneios ocasionais: embora a referência a Mad Max: Estrada da Fúria seja divertida, ela faz parte de uma cena que não acrescenta nada à trama principal.
Falhando em uma ou outra tentativa de humor, com piadas às vezes fáceis de antever, Moana também erra ao incluir algumas alterações de comportamento súbitas e convenientes que certos personagens têm no terceiro ato e abusa de diálogos expositivos que frequentemente servem para reiterar informações que já eram claras (não dá para entender por que o filme explica de novo a história envolvendo Maui e o coração de Te Fiti mesmo que tenha feito isso na abertura). Apesar dos pesares, não há nada que abale de maneira fatal este que é, sem dúvida alguma, mais um êxito das animações modernas da Disney – e é bom saber que, agora, o universo da cultura pop também conta com protagonistas femininas com as de Moana, Valente, Frozen, O Despertar da Força, Zootopia e Rogue One.