A intenção de 007 Contra o Satânico Dr. No pode ser abreviada através de um momento específico, porém memorável: aquele que traz o espião James Bond pela primeira vez em cena. Antes de mostrar o rosto do protagonista de imediato, o diretor Terence Young dedica cerca de um minuto inteiro a apenas preparar o espectador para a introdução do herói, mantendo sua cabeça escondida pela de outra pessoa que se encontra à frente, enfocando somente os detalhes de suas mãos enquanto joga pôquer (e fazendo suas cartadas soarem como algo genial) e revelando uma parte de seu corpo a partir de um travelling que se afasta de outra jogadora na mesa até parar atrás do ombro de Bond – e, com isso, criando expectativas acerca de sua aparição antes de culminar, claro, no plano que revela Sean Connery dizendo “Bond… James Bond” enquanto acende um cigarro.
Não é difícil constatar, portanto, o interesse de Young em endeusar aquele personagem ao máximo possível, enxergando-o não como um ser humano comum, mas como um ícone. E o fato de não demonstrar nenhuma sutileza em sua abordagem, escancarando sua vontade de pintar o agente 007 como um indivíduo notável e charmoso, se mostra perfeitamente condizente com a proposta inteira do longa, que, do início ao fim, abraça o absurdo e o exagero de sua premissa sem vergonha alguma. Assim, o que torna Dr. No tão eficiente não é o detalhe de James Bond ser um personagem marcante, mas o fato de o próprio filme enxergá-lo como tal.
Adaptado do sexto livro da coleção escrita por Ian Fleming, Dr. No marca a estreia do agente 007 nas telonas – no que eventualmente significaria o início de uma série de 24 filmes (ou 26, se considerarmos os dois longas que não foram bancados pela Eon Productions). Aqui, no entanto, o roteiro de Richard Maibaum, Johanna Harwood e Berkely Mather coloca o agente 007, do MI6, sendo mandado à Jamaica para investigar o sumiço do também espião Strangways, que carregava importantes documentos consigo. À medida que a missão avança, porém, Bond descobre que quem está por trás disso é um cientista nuclear chamado Dr. No, que, escondido em uma ilha altamente fortificada, acaba de começar a contagem regressiva de um ataque capaz de por o mundo inteiro em risco.
Enxergando o universo criado por Fleming como uma oportunidade de se aventurar no absurdo (não se sentindo obrigado, por exemplo, a forçar um “realismo” ao encarar certos aspectos da trama em si), Terence Young exibe um olhar bastante imediatista ao lidar tanto com a narrativa quanto com o universo no qual esta se passa, abraçando o exagero com frequência (mesmo tomando cuidado para não soar irreverente) e admitindo sua devoção pela figura de James Bond sem fazer quaisquer concessões. Aliás, a idolatria de Young (e do roteiro) pelo protagonista é comprovada pela maneira como este é retratado em cena: sempre como um espião inteligente (ele se prepara para a chegada do mais improvável dos inimigos), pronto para a briga (ele embarca em uma viagem de carro mesmo sabendo se tratar de uma cilada), charmoso em sua postura física, sedutor ao interagir com mulheres e frequentemente surgindo em cena com o icônico tema musical de Monty Newman ao fundo.
Neste sentido, a performance de Sean Connery assume não apenas a função de dar vida ao 007, mas também a de corresponder à idolatria que o cerca (se James Bond fosse vivido por um ator menos capaz de representar seus traços de personalidade, toda a abordagem de Young soaria gratuita, como se tentasse reverenciar um cara que não faz por merecer tanta reverência). Assim, Connery não poderia ter se revelado uma escolha melhor para o papel: alternando entre a imponência exigida pelos momentos mais tensos e a pose charmosa que se permite adotar nos instantes mais descontraídos, Bond jamais deixa de soar como uma figura emblemática (não necessariamente indestrutível, mas… incapaz de perder a compostura), mostrando-se consciente de seu próprio talento, por exemplo, ao fazer uma ou outra piadinha durante as missões (quando o carro de um vilão é explodido após uma perseguição, Bond apenas diz que este “Estava a caminho de um funeral”). Além disso, a postura física, o olhar atraente e o tom de voz grave adotados por Connery ajudam a estabelecer a persona do herói – e que Young registra sabendo estar diante de um personagem marcante.
A mesma estratégia de engrandecimento, aliás, é direcionada também ao vilão que dá título ao filme: demorando a ter seu nome mencionado ao longo da narrativa, o Dr. No é introduzido primeiramente pela voz, que é escutada de forma estrondosa durante o depoimento de certo capanga (ou seja: assim como havia feito com o herói, Young faz questão de preparar a primeira aparição do vilão em vez de apresentá-la rapidamente). Não é surpresa que, quando finalmente vemos o Dr. No em cena, nos deparamos com uma figura claramente longe da realidade, que não poderia (nem deveria) soar como um cientista comum: dono de duas mãos biônicas impostas que tiveram que ser implantadas em função do contato frequente com a radiação, o vilão é vivido por Joseph Wisemann como um sujeito impiedoso, mas cujo tom de voz sereno impede o espectador de detestá-lo ou mesmo de encará-lo como um desequilibrado – e o fato de ele oferecer hospedagem para os heróis, com direito a serviço de quarto e a refeições diárias, o torna ainda mais… curioso, por assim dizer.
O que nos traz a outro aspecto importantíssimo de Dr. No: o trabalho do designer de produção Ken Adam, que trabalhou com Stanley Kubrick em duas ocasiões (Dr. Fantástico e Barry Lyndon) e que, aqui, faz jus à proposta absurda e fantasiosa de Young e do roteiro, concebendo, por exemplo, a fortaleza do vilão como uma base gigantesca no meio do nada e que impressiona tanto em sua grandiosidade quanto em sua praticidade – afinal, ela combina uma usina nuclear, a moradia luxuosa de seu dono e os quartos para seus hóspedes. E se Young faz um bom trabalho ao aproveitar as belíssimas paisagens que cercam a ilha do Dr. No, seu desempenho ao coordenar as sequências de ação também não deixa a desejar, saindo-se bem, por exemplo, ao registrar as ótimas coreografias de luta e ao conferir dinamismo a toda a correria que ocorre no terceiro ato.
Já introduzindo vários elementos que virariam marcas registradas da franquia ao longo dos capítulos posteriores (a presença de uma “bondgirl”, aqui vivida por Ursula Andress; o vilão megalomaníaco com planos impossíveis; o bom uso de paisagens glamourosas; a preferência do protagonista por martíni “não mexido”; etc), Dr. No é um filme que, revisto após 58 anos, nos faz entender perfeitamente o porquê de James Bond ter se tornado tão popular e de suas aventuras ainda persistirem depois de tantas décadas.