Que monstros costumam representar frequentes causadores de medo em crianças, isso todo mundo já sabe. Agora, pensem num filme que explica por que tais criaturas se dispõem a aterrorizar os pequenos e ainda estabelece que monstros temem infantes humanos por considerá-los “tóxicos”, desenvolvendo também o conceito de que existe uma indústria especializada em transformar gritos de crianças em energia para a cidade de Monstrópolis. Lendo esta pequena descrição, algo se torna evidente: às vezes, a criatividade da Pixar parece não ter limites. Responsável por revolucionar o mundo das animações e encantar o público com obras como Toy Story, sua continuação e Vida de Inseto, o estúdio comprova mais uma vez seu já incontestável brilhantismo neste Monstros S.A., que apresenta um universo inventivo igualado somente pelo carisma dos personagens que nele habitam e pela trama altamente imaginativa.
Escrito por Dan Gerson e pelo mesmo Andrew Stanton que roteirizou Toy Story 1, 2 e Vida de Inseto, este quarto longa-metragem produzido pela Pixar introduz a dupla de amigos James P. “Sulley” Sullivan e Mike Wazowski, que juntos trabalham na Monstros S.A. transformando gritos de crianças humanas em energia para sustentar a cidade de Monstrópolis (onde vive uma sociedade bem parecida com a nossa, diga-se de passagem). Entretanto, depois que uma menina acaba indo parar no universo dos monstros graças a um descuido de Sulley, ele e Mike terão que se desdobrar para levar a garota (que ganha o apelido de “Boo” conforme a narrativa progride) de volta ao quarto onde vive em seu mundo sem causar pânico (algo praticamente impossível), enfrentando, no caminho, o malévolo colega de trabalho Randall.
Repleto de tiradas espontâneas que jamais soam forçadas ou malsucedidas, Monstros S.A. impressiona em função do universo criativo que concebe, agradando com múltiplos tipos diferentes de criaturas que exibem suas próprias habilidades (ou peculiaridades) que vão de um espirro que ateia fogo num jornal até um faxineiro que, sem querer, sempre deixa o chão sujo graças ao seu corpo gosmento – da mesma forma, a Agência de Detecção de Crianças também garante risadas com seus métodos enérgicos de como livrar Monstrópolis de “perigos”, ao passo que Celia (par romântico de Mike Wazowski) chama a atenção com as pequenas serpentes que carrega na cabeça como se fossem cabelos cacheados. Além disso, o excepcional design de produção mostra-se digno de aplausos ao retratar o mundo dos monstros como um ambiente repleto de cores fortes e estruturas complexas como um grandioso “depósito de portas”, atraindo ainda ao definir cada um dos cenários visitados pelos personagens com aparências específicas – e o quarto de “Boo”, por exemplo, traz alguns easter eggs que certamente levarão os fãs da Pixar à loucura.
Aliás, do ponto de vista técnico, Monstros S.A. representa mais um deslumbre a ser adicionado na coleção de êxitos do estúdio: alcançando um nível de realismo espantoso ao criar os cabelos das crianças e as texturas dos monstros, os animadores chegaram a desenvolver um software chamado Fizt que auxiliou na elaboração dos movimentos da roupa de “Boo” e na projeção de sombras entre os inúmeros pelos presentes no corpo de Sully (que se mexem o tempo todo). De modo similar, a fluidez nos trejeitos dos personagens jamais é cessada, algo que também se aplica à interação entre os monstros e os objetos em torno destes – e me agrada, particularmente, a cor da perna de Mike Wazowski depois de ser mergulhada numa privada, apresentando uma tonalidade escurecida e úmida que sugere níveis mais elevados de realismo (por mais fantasiosas que sejam tais criaturas). Para completar, há também a ótima trilha sonora de Randy Newman, que evoca um caráter embasado no jazz enquanto a sequência de abertura bidimensional remete a animações clássicas das décadas passadas.
Claro que este preciosismo todo de nada valeria caso os personagens não correspondessem ao talento presente nos valores técnicos da produção – e se o vilão Randall provoca sentimento de ameaça sem deixar de render bons momentos de maior leveza, o sensacional Mike Wazowski se destaca em razão de seu senso de humor abundante em sarcasmo e de suas tiradas que expõem um narcisismo leve, porém divertidíssimo (“Sou tão romântico que, de vez em quando, até penso em casar comigo mesmo“), sendo beneficiado pelo timing cômico invejável proporcionado tanto pelo trabalho de voz de Billy Crystal quanto pela excelente dublagem brasileira de Sérgio Stern. Todavia, é a relação entre Sully e a garotinha humana que mais importa no projeto: percebendo que se trata de um ser vivo brincalhão e que seria incapaz de machucá-lo, o monstro azul aos poucos começa a desenvolver afeto pela menina ao ponto de ajudá-la a dormir e brincar docilmente com ela, passando a chamá-la de “Boo” a partir de certo instante e evidenciando de vez seu apego pela criança – algo que faz com que o terceiro ato soe ainda mais comovente e poderoso.
Honrando o histórico dos filmes de monstros através de ótimas referências (uma delas envolvendo o nome de Ray Harryhausen, inclusive), Monstros S.A. é o tipo de obra que consegue levar o público a rir e derramar lágrimas na mesma medida, representando um mérito que deve ser atribuído ao diretor Pete Docter e à competência que denota aqui ao alternar entre a sensibilidade e o humor irreverente, definindo o tom da narrativa de maneira inquestionavelmente eficaz. Somando-se esta habilidade à criatividade existente na trama, o resultado é um longa-metragem que merece entrar para a lista de primores que somente um estúdio como a Pixar poderia conceber.