Não é todo dia que vejo um filme onde super-heróis são banidos, discutem com familiares a respeito de suas habilidades fantásticas, se aborrecem nos locais onde trabalham sob suas identidades civis e criticam o conformismo puro da sociedade através de diálogos inteligentes. O mais inesperado, no entanto, é que não estou falando de uma adaptação de HQs da Marvel ou da DC, mas sim de uma criação da mesma Pixar de Toy Story, Toy Story 2, Vida de Inseto, Monstros S.A. e Procurando Nemo. Revelando personagens cujos dilemas pessoais são tratados com uma competência ausente em muitas produções voltadas ao público adulto, Os Incríveis une-se a Homem-Aranha 2 como um dos grandes blockbusters de 2004 e – por que não? – como um dos melhores longas sobre seres superpoderosos já realizados, mérito que certamente deve ser atribuído ao mesmo Brad Bird cuja curta carreira inclui outra passagem pelo mundo das animações: o excelente O Gigante de Ferro.
Dirigido e roteirizado por Bird, o filme nos apresenta a um universo onde super-heróis existem e são numerosos, garantindo a proteção dos habitantes da cidade fictícia de Metroville e lutando contra vilões como Bomb Voyage (ah, esses nomes de quadrinhos…). Após várias ações judiciais serem movidas contra os justiceiros, porém, estes são obrigados a levar vidas tradicionais quando uma lei é sancionada. Passam-se 15 anos e Bob Parr, o ex-Sr. Incrível, se encontra com a imensa necessidade de reviver seu passado glorioso ao mesmo tempo em que, junto à esposa Helen (a ex-Mulher-Elástica), dá atenção aos filhos Violet (capaz de tornar-se invisível e criar campos de força), Dash (um menino capaz de correr velozmente) e Jack Jack (que, pelo que tudo indica, não possui superpoderes). Depois que recebe uma “proposta de emprego”, Bob vê a oportunidade perfeita para voltar a utilizar suas especialidades, unindo-se à sua família para combater a vilania do maligno Síndrome e de seu exército de asseclas.
Se estabelecendo como uma espécie de “Watchmen infanto-juvenil” (querem um elogio maior que esse?!), Os Incríveis respira a cultura dos super-heróis desde seus instantes iniciais; e qualquer um que tenha lido a obra-prima de Alan Moore e Dave Gibbons reconhecerá a influência da graphic novel acerca do trabalho de Brad Bird através de alusões à “Lei Keene” (que proibia o vigilantismo) e aos danos que uma simples capa pode oferecer (pensem no coitado do Dollar Bill). Além disso, o próprio nome da cidade em que os Incríveis vivem referencia duas cidades importantes na vida de Superman (Metrópolis e Smallville), ao passo que a dinâmica entre a família de heróis e o conceito em si remetem imediatamente ao Quarteto Fantástico e seus integrantes. Por sua vez, o compositor Michael Giacchino também ganha a oportunidade de homenagear o gênero nos segundos finais da projeção, quando emprega acordes que remetem à trilha que John Williams criou para Superman – aliás, o desempenho de Giacchino aqui (com fortes ares de James Bond) certamente deve integrar a lista de melhores composições incidentais já pensadas para animações, consagrando um tema musical espetacular e memorável.
Evocando a aura classuda que existia nos heróis da Era de Ouro dos quadrinhos, Os Incríveis confere um grau surpreendente de verossimilhança aos conflitos entre os personagens e faz com que os dramas existentes dentro dos Parr soem convincentes mesmo que estes envolvam aventuras explosivas e vilões megalomaníacos – e, neste sentido, é admirável que cada um dos integrantes da família ganhe mini-arcos narrativos que tornam a questão do super-heroísmo ainda mais complexa: Bob anseia desesperadamente retomar sua empolgante carreira como Sr. Incrível e constituir uma família ao mesmo tempo (como fica evidente logo na sequência de créditos iniciais, onde o protagonista demonstra certa insatisfação com um mundo que “sempre precisa ser salvo“); Helen luta para se afastar do seu passado como Mulher-Elástica para se dedicar à criação sadia de filhos “normais”; Dash adoraria correr no atletismo que há em sua escola, mas não pode porque exporia sua supervelocidade ao vencer de seus adversários; e Violet mostra-se claramente inconfortável com sua natureza e vive encantada com um garoto de seu colégio, mas não consegue se aproximar do rapaz por conta de sua timidez (algo que se reflete em um de seus superpoderes: a invisibilidade).
O arco de Bob, inclusive, é pontuado por vários momentos que exprimem seu estado emocional: antes, quando ele agia livremente como Sr. Incrível, ele encontrava-se no extremo do super-heroísmo iconizado e comparava suas ações em prol da segurança pública com os esforços de uma diarista (nenhum dos dois consegue cumprir um trabalho sem que este seja desfeito em seguida). Quando mais de uma década se passa e reencontramos o personagem como um corretor de seguros desmotivado, sua ânsia incontrolável de revisitar os dias de glória o leva a realizar pequenas boas ações que são terminantemente proibidas na agência onde trabalha. E após “jogar boliche” (leia-se: colocar uma máscara para salvar pessoas de um incêndio e fugir da polícia logo depois), Parr chega à casa e toma um susto com a presença de Helen, efetuando uma (ridícula) pose de combate que deixa clara a sua pré-disposição de estrelar um ato heroico. Mas isso não quer dizer que Sr. Incrível seja o maior destaque – e não é por acaso que, quando o segundo ato deixa Bob de lado para passar um bom tempo se concentrando em Helen, Dash e Violet, jamais sentimos que o filme fica menos interessante. Pelo contrário: a sequência que mostra Mulher-Elástica se infiltrando na base de Síndrome é sensacional, a alegria do garoto ao enfrentar vilões numa floresta é contagiante e o receio da adolescente em expor os campos de força que sempre lutou para conter é particularmente cativante (até mesmo Jack Jack, o bebê inofensivo, ganha uma oportunidade para brilhar de modo memorável).
Por falar em personagens, Brad Bird merece aplausos pelo brilhantismo com que desenvolve o tema central de Os Incríveis: o fato de que pessoas especiais existem, mas nem todas são assim (assunto recorrente na filmografia do diretor). Em certo ponto do terceiro ato, Síndrome afirma que “Quando todos forem super, ninguém mais será“. Basta substituir a palavra “super” por “especial” e perceberá que, nesta obra, Bird encontra estratégias eficazes para questionar o que leva a sociedade a se contentar com banalidades ao ponto de ignorar indivíduos que realmente exibem capacidades dignas de nota – e neste caminho, o cineasta não apenas valoriza a cultura dos super-heróis como a utiliza para dar origem a reflexões intrigantes a respeito do mundo em que vivemos. Adotando este assunto como força motriz da narrativa, o roteiro excepcional consegue, de quebra, encontrar meios de justificar as motivações rasas que cercam a vilania de Síndrome, estabelecendo que o antagonista quer mesmo é provar que qualquer um pode ser super/especial e afundar a sociedade num mar de mediocridade. O antagonista, diga-se de passagem, revela ideais realistas de vez em quando, dizendo que enriqueceu fabricando e vendendo armas para países que queriam se sentir “respeitados” (leia-se: ameaçadores).
Já em seus aspectos técnicos, a produção surpreende no design dos personagens: era de se esperar que uma animação computadorizada estrelada por pessoas (em vez de peixes, brinquedos, insetos ou monstros) recriasse com máxima fidelidade e realismo as aparências de seres humanos, mas graças à imaginação da equipe de animadores e do próprio Brad Bird, os heróis e vilões que dão as caras em Os Incríveis apresentam-se esteticamente como figuras caricaturais que exibem cabeças desproporcionais e estaturas que variam entre comicamente minúsculas e exageradamente maiúsculas, deixando claro que, apesar dos personagens multifacetados e realistas, estes pertencem mesmo a um universo fictício e cartunesco. Igualmente impressionantes são as sequências de ação, que surgem sempre claras e bem resolvidas no que diz respeito à mise-en-scène, à distribuição de corpos e itens pelos cenários e à geografia destes, funcionando ainda mais graças à dinâmica entre os heróis e à forma como estes combinam seus superpoderes – com isso, Bird merece mais elogios graças aos planos e cortes cuidadosos que impedem que tais cenas tornem-se incompreensíveis (uma proeza que deveria invejar muitas produções live-action, por sinal).
Agradando também com seus coadjuvantes que desempenham funções narrativas importantes ao mesmo tempo em que despertam risadas constantes (Edna Mode é uma adição fabulosa a uma galeria que já conta com nomes como Mike Wazowski e Dory, ao passo que Frozone revela-se carismático e divertido do início ao fim), Os Incríveis merece ser lembrado não apenas como um dos melhores projetos do já fascinante catálogo da Pixar, mas como um dos melhores longas envolvendo super-heróis produzidos até agora. Trata-se de um exemplo perfeito de como um blockbuster deve ser: impactante sem que se leve mais a sério que o ideal, divertido sem ser tematicamente vazio e eficiente como filme de ação e aventura sem que, no processo, deixe de desenvolver personagens cujos dramas pessoais soam intrigantes e verossímeis.