Escolher um filme favorito de certo estúdio quase nunca é uma tarefa fácil. Quando o estúdio em questão é aquele que já nos presenteou com obras como Toy Story, Toy Story 2, Vida de Inseto, Monstros S.A., Procurando Nemo, Os Incríveis e Ratatouille (e, ok, Carros), porém, a situação torna-se ainda mais complicada. Contudo, ao assistir a Wall-E, algo torna-se evidente: mesmo com sua carreira impecável, a Pixar jamais tinha atingido níveis tão impressionantes de originalidade e profundidade temática. Se este longa dirigido por Andrew Stanton é o melhor da produtora, não sei dizer, mas é fato que se trata de um dos mais adultos e intrincados – é uma pena, portanto, que o potencial artístico das animações seja subestimado com frequência, pois Wall-E é bem mais do que “apenas” um passatempo agradável e merece ressoar como um clássico incontestável.
Roteirizado por Stanton junto a Jim Reardon, a película nos apresenta à Terra de 2805, onde a raça humana direcionou-se ao espaço sideral e deixou seu planeta natal para trás depois que este se tornou inabitável. Neste mundo arenoso e devastado, o robô Wall-E – desenvolvido para compactar e agrupar o lixo gerado pelas pessoas – segue desempenhando suas funções na companhia de uma barata, abrigando-se num quarto pequeno e resistindo a tempestades de areia constantes enquanto vê filmes, ouve músicas e interage com outros itens que seres humanos costumavam utilizar no passado. Eis que uma nave pousa na Terra e, de lá, surge a robô EVA, que logo transforma-se no par romântico de Wall-E antes que eventos grandiosos levem o casal a Axiom, uma imensa espaçonave que abriga a Humanidade.
Se em Monstros S.A. afirmei que “às vezes, a criatividade da Pixar parece não ter limites”, aqui me sinto na obrigação de dizer que o mesmo preciosismo também diz respeito aos atributos técnicos das produções do estúdio – e ainda que já tenha concebido monstros surpreendentemente “realistas”, mares fabulosos, super-heróis cujas aparências eram inventivas, carros que exibiam expressões faciais impressionantes e uma reconstituição irretocável de Paris, a empresa volta a alcançar proezas extraordinárias em Wall-E: imaginando a Terra de 2805 como um ambiente repleto de construções destroçadas e coberto com quantidades abundantes de areia (pensem na Sidney do final de Mad Max 3, por exemplo), o design de produção elaborado por Ralph Eggleston apresenta pilhas de lixo que formam imagens levemente semelhantes às pirâmides egípcias, brilhando também ao empregar cores fortes e construções complexas para criar a magnífica nave de Axiom (praticamente uma versão high tech do Magic Kingdom). Por sua vez, o diretor de fotografia Jeremy Lask denota inteligência ao contrapor o mundo arenoso e sujo em que Wall-E habita com as tonalidades prateadas e límpidas que dominam a projeção a partir do segundo ato.
Da mesma forma, a equipe técnica merece todos os aplausos possíveis graças à concepção dos robôs e de como os mesmos interagem com os cenários: revelando um cuidado ímpar ao incluírem, por exemplo, as marcas que os “pés” (leia-se: pequenas esteiras) do protagonista deixam no solo, os animadores expõem uma riqueza de detalhes que vai das poeiras no corpo do personagem-título até reflexos em locais específicos, alcançando o máximo do apuro estético num momento em que o casal vai à casa de Wall-E e o corpo de EVA surge refletindo tudo à sua volta. Além disso, os movimentos dos robôs soam fluidos e se tornam ainda mais eficazes graças à criatividade que envolve suas especialidades – percebam como é intrigante o modo com que o protagonista se encolhe e como suas sobrancelhas/olhos se mexem expressivamente, ao passo que o braço da fêmea apresenta dedos quando não está sendo usado como arma. E se o designer de som Ben Burtt (que trabalhou em Star Wars) destaca-se ao ilustrar as vozes dos personagens com ruídos cibernéticos, o compositor Thomas Newman adiciona mais um excelente trabalho ao histórico de trilhas sonoras fantásticas da Pixar, retratando o cotidiano de Wall-E de forma simpática e acrescentando sensibilidade à interação entre o robô e seu par romântico.
Demonstrando uma clara evolução desde que co-dirigiu Vida de Inseto e comandou Procurando Nemo, o cineasta Andrew Stanton mostra-se espirituoso desde o primeiro ato do longa, que, sem depender de diálogo algum, aposta num humor corporal que remete a colossos do Cinema como Charlie Chaplin e Buster Keaton. Igualmente geniais são os movimentos de câmera estudados que o diretor realiza para conceituar a grandeza da nave Axiom ou o rack focus que dá ênfase a uma planta, acertando também nos ajustes frenéticos que simulam a técnica da câmera na mão e conferem um ar de realidade ao que se vê em tela. Para melhorar, Stanton transita de maneira impecável entre alívios cômicos e instantes mais intimistas, definindo habilmente o tom da narrativa – para constatar isso, basta ver como o filme salta com segurança de sequências como o romântico “balé” entre Wall-E e EVA para referências inteligentes a 2001: Uma Odisseia no Espaço e Planeta dos Macacos (que, diga-se de passagem, jamais parecem gratuitas ou descartáveis).
Por falar na cena em que o casal de robôs “dançam” no espaço, trata-se de um momento que certamente merece ser eternizado não apenas por permitir que vejamos com clareza o design das turbinas e do exterior da Axiom (outro mérito de Andrew Stanton), mas por representar uma poesia espetacularmente deslumbrante – e há um motivo específico para que tal sequência soe tão emblemática: quando ela finalmente surge em tela, seu impacto é potencializado graças à competência com que o romance entre os dois personagens havia sido desenvolvido anteriormente, cativando o espectador sem depender de clichês ou truques baratos. Contudo, o que realmente atrai é o charme dos robôs: enquanto EVA é caracterizada como uma figura imponente e vai revelando cada vez mais sua tocante humanidade conforme a narrativa progride, representando um belo exemplo de papel feminino forte (e que pouco precisa do auxílio de heróis do sexo masculino), Wall-E encanta com sua personalidade bondosa e vulnerável que gradualmente se converte numa valentia admirável – e é curioso que o personagem-título tenha o hábito de coletar ou interagir, no primeiro ato da projeção, com pequenos seres vivos e itens criados por pessoas, como se estivesse buscando formas de se relacionar com a Humanidade que lhe projetou no passado.
De todo modo, o fator que verdadeiramente transforma Wall-E na obra mais ambiciosa e tematicamente relevante que a Pixar já produziu consiste nas mensagens existentes no roteiro a respeito de múltiplos temas – e se o combate à poluição pode soar como uma discussão batida e pouco inspirada, tal impressão se dissipa a partir do instante em que o longa mostra-se disposto a debater o assunto com a devida maturidade. Assim, quando vemos as consequências arrasadoras que praticas ilícitas do Homem trouxeram ao ecossistema e que tais danos obrigaram a raça humana a se afastar do planeta em que vivia, direcionando-se ao espaço para evitar possíveis riscos, vem à tona o sentimento de que a situação precisa ser revertida e que a natureza deve ser protegida – neste sentido, retorno ao design de produção, que não se intimida diante da possibilidade de retratar o planeta Terra de 2805 como um ambiente genuinamente assustador.
Mostrando os perigos que o futuro pode gerar à sociedade graças não só às complicações ambientais (produzidas pelos seres humanos), mas também ao consumismo que toma conta do mundo e que tende a destruir este cada vez mais, Wall-E choca ao ilustrar os seres humanos do século 29 como sujeitos obesos e que vivem deitados em camas flutuantes enquanto comem, bebem e se divertem em repouso, representando o auge das sequelas que o capitalismo poderia proporcionar. Para completar, é digno de nota que o cenário da Axiom exiba inúmeras marcas e logotipos que ajudam a fortalecer a crítica oferecida pela obra ao consumo deliberado e sem culpa, alfinetando de vez o mercado que visa apenas o lucro sem se importar com a qualidade de vida da sociedade.
O mais surpreendente – e admirável -, no entanto, é que mesmo apresentando um universo tenebroso onde a Terra está inabitável e os seres humanos cederam às vontades do capitalismo descontrolado, Wall-E revela um otimismo formidável ao deixar claro que, mesmo nas piores condições, sempre precisamos preservar a esperança, pois esta certamente virá caso acreditemos.
E, considerando que vivemos num mundo caótico em que tudo parece se encaminhar para esta distopia elaborada por Andrew Stanton, posso concluir que é justamente desse tipo de otimismo que precisamos nas atuais circunstâncias