Só a Pixar consegue ser a Pixar. Se os projetos anteriores do estúdio destacavam-se provando que conceitos pueris poderiam obter resultados fabulosos e, em alguns casos, tematicamente relevantes, este Up: Altas Aventuras surge como um legítimo “filme sobre a vida” e desenvolve assuntos como a importância de “seguir em frente” (discutirei isso mais adiante) de maneira surpreendentemente adulta e ambiciosa – e se o simples fato do longa conseguir levar o espectador às lágrimas já poderia ser considerado louvável, esta qualidade torna-se ainda mais impressionante quando constatamos que tal proeza é conquistada em apenas dez minutos de projeção. Em contrapartida, é uma pena que a película deixe um pouco a desejar após o primeiro ato magistral, fazendo deste segundo longa-metragem dirigido por Pete Docter levemente inferior a títulos memoráveis como Toy Story, Toy Story 2, Monstros S.A., Procurando Nemo, Os Incríveis, Ratatouille e Wall-E.
Escrito por Docter em parceria com Bob Peterson, Up nos apresenta a Carl Fredricksen, um viúvo idoso que vive uma situação similar à encarada por Arthur Dent em O Guia do Mochileiro das Galáxias, recusando-se a abandonar sua casa para que uma construção seja feita naquele terreno. No entanto, depois que um acidente acaba machucando um dos construtores, Carl é despejado e recebe a ordem de se mudar para um asilo. Assim, Fredricksen cria um plano inusitado para proteger sua residência, fugir do local e realizar o sonho de sua falecida esposa – morar à beira do Paraíso das Cachoeiras, na Venezuela -, amarrando incontáveis balões em sua casa para levá-la voando à América do Sul. O que Carl não esperava, porém, é que um escoteiro de oito anos chamado Russell embarcaria na jornada para que pudesse receber um distintivo de “apoio a um idoso”, partindo numa aventura que também vem a envolver uma ave pré-histórica e cachorros que falam através de tecnologias fantásticas.
Depois de seu excelente desempenho em Monstros S.A., o diretor Pete Docter segue demonstrando uma capacidade invejável de definir com competência o tom da narrativa e combinar leveza com seriedade – e aqui retorno ao emocionante prólogo, que certamente merece figurar entre as melhores coisas já produzidas pela Pixar e introduz o espectador no universo de Up através de uma cena dramática antes de lançá-lo em sequências de ação, alívios cômicos e cenários formidáveis povoados por criaturas adoráveis. Como consequência, o arco percorrido pelo protagonista soa coeso e as atitudes tomadas por Carl (bem como suas motivações) tornam-se ainda mais compreensíveis; aliás, não é sempre que vejo uma animação retratando com tamanha maturidade a trajetória da vida de um personagem, o luto que encara e sua incapacidade de se desprender do passado para aceitar de vez o presente e o futuro.
Com isso, Carl Fredricksen revela-se como um dos protagonistas mais humanos que já foram concebidos pela Pixar: determinado a realizar o sonho de sua esposa sem saber o que fazer depois disso, o personagem enfrenta dilemas que fazem parte da vida de qualquer um e passa por um processo de evolução ao longo da narrativa que automaticamente cria uma identificação entre o público e a obra, exemplificando o quão importante é saber deixar o passado para trás (o que não significa esquecê-lo) e se adequar aos novos acontecimentos que surgem frequentemente – e aqui reitero o que afirmei no parágrafo inicial: Up é um filme sobre a vida. (E por que não citar o trabalho de Chico Anysio na dublagem brasileira de Carl, que consegue transitar genialmente entre a densidade dramática e a graça gerada pela ranzinzice do personagem em mais uma das inúmeras provas do timing cômico brilhante que o humorista possuía?)
Por outro lado, se é bem-sucedido ao conduzir de maneira crescente o desenvolvimento do protagonista e as lições propostas pela narrativa, o filme infelizmente conta com sua parcela de defeitos: depois do primeiro ato primoroso, Up começa a expor uma clara dificuldade de retornar ao elevado padrão de qualidade proposto no início e desaponta com uma aventura pouco original envolvendo um vilão superficial e esquecível que lidera… um exército de cachorros falantes (e devo confessar que até isso me deixou levemente frustrado). Pra piorar, o roteiro peca ao tratar com suavidade algumas situações que, por natureza, exigem conclusões mais elaboradas – e peço desculpas, mas terei que apresentar um mini-spoiler: há um instante onde Russell (um personagem bem chatinho, diga-se de passagem) está amarrado numa corda enquanto sobrevoa uma cidade admirando sua paisagem quando, de repente, seu sustento se arrebenta e o pequeno escoteiro cai. Por mais que a produção tente encarar este momento como uma mera gag visual que não requer grandes resoluções, trata-se de algo absurdo e grandioso demais para dispensar qualquer explicação.
Todavia, nenhuma destas falhas pontuais é capaz de eliminar o charme de uma aventura que, além de tudo, ainda conta com valores técnicos impressionantes – e respeitando a lógica proposta por Os Incríveis, Ratatouille e Wall-E, Up acerta ao investir em designs imaginativos e pouco realistas para conceber seres humanos computadorizados, impressionando também no perfeccionismo existente nos detalhes das roupas e dos movimentos minuciosos executados pelos personagens (num mérito que deve ser atribuído à equipe de animadores e seu talento digno de nota). E se a fotografia mostra-se inteligente ao substituir tons cinzentos por cores mais fortes e vibrantes conforme a narrativa avança e Carl vai encontrando seu rumo, empregando também colorações quentes para retratar a nostalgia do personagem nos minutos iniciais da projeção, o design de produção brilha ao idealizar cenários que oscilam entre o fantasioso e o realista (e é curioso que o embate entre o protagonista e o vilão se passe num museu de itens pré-históricos, algo que tem a ver com o próprio tema abordado pelo roteiro: a conciliação entre o passado, o presente e o futuro).
Mas não há nada que agrade tanto quanto Carl Fredricksen e sua personalidade imensamente tocante, caracterizando-se como um personagem verossímil e humano que é devidamente explorado por uma narrativa cativante; e mesmo que traga alguns problemas ocasionais, Up: Altas Aventuras merece ser lembrado como um dos grandes acertos da Pixar, um estúdio que, como já foi dito, é ímpar em suas ambições.