A Forma da Água (1)

Título Original

The Shape of Water

Lançamento

1º de fevereiro de 2018

Direção

Guillermo del Toro

Roteiro

Guillermo del Toro e Vanessa Taylor

Elenco

Sally Hawkins, Doug Jones, Michael Shannon, Richard Jenkins, Michael Stuhlbarg, Octavia Spencer, Nick Searcy, David Hewlett, Lauren Lee Smith e Morgan Kelly

Duração

123 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Guillermo del Toro e J. Miles Dale

Distribuidor

Fox

Sinopse

Década de 60. Em meio aos grandes conflitos políticos e transformações sociais dos Estados Unidos da Guerra Fria, a muda Elisa (Sally Hawkins), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa e maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado resgate ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer).

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A Forma da Água | Crítica

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Dentre as muitas frases excelentes do crítico Roger Ebert, há uma específica que me vem à mente com frequência: “O que importa não é do que se trata o filme, mas como ele trata”. Este é um pensamento que diz muito a favor de A Forma da Água: por um lado, é verdade que o novo filme de Guillermo del Toro conta com uma premissa nada original; por outro, é sempre possível que algo brilhante surja de onde menos esperamos. Afinal, qualquer coisa que inclua del Toro, sua criatividade visual e sua sensibilidade particular já merece uma atenção especial – e, neste caso, a velha ideia de um romance inesperado entre uma dama e uma criatura estranha acaba resultando num longa tão apaixonante quanto o casal que protagoniza a trama.

Roteirizado por Guillermo del Toro ao lado de Vanessa Taylor, A Forma da Água se passa em 1962 e gira entorno de Elisa Esposito, que, muda desde criança, se comunica através da linguagem de sinais e trabalha como faxineira num laboratório secreto em Baltimore. Em mais um dia rotineiro, Elisa é surpreendida quando uma equipe de cientistas traz uma fera marítima desconhecida a fim de estudá-la, parecendo mais um híbrido de peixe com homem – e que acaba conquistando a simpatia da mulher. Ao perceber que o temível coronel Richard Strickland está prestes a matar o animal por puro prazer, a faxineira resolve levá-la para o conforto de sua casa e impedir sua execução.

Claro que não é a mais inovadora das premissas, já que uma série de outras obras se encarregaram de mostrar um amor impossível surgindo entre um ser humano e uma criatura completamente diferente (o exemplo mais óbvio é A Bela e a Fera). O que torna A Forma da Água especial, porém, é que nem todos os longas que o antecederam contam com a magia de Guillermo del Toro, que realiza aqui o que talvez seja seu melhor trabalho desde O Labirinto do Fauno. Desta vez, o cineasta confere um tratamento surpreendentemente adulto a uma história que grande parte dos realizadores encarariam como um material voltado para o público infanto-juvenil (uma decisão que revela-se acertada): enquanto as cenas mais violentas fazem o público manter em mente a ideia de que consequências reais podem acontecer naquele mundo (e se importar mais com os personagens), os momentos que apresentam um teor sexual enriquecem o conceito de paixão que entrelaça a Elisa e o homem-peixe, pois passamos a acreditar mais no romance quando percebemos que o desejo – intrínseco a esse tipo de relação – está presente ali.

No entanto, o mais inesperado é que, embora contando com uma sequência violenta aqui e outra mais sensual ali, Guillermo del Toro ainda assim transforme A Forma da Água numa fábula repleta de leveza e inocência, sugerindo que, depois de desapontar com o fraco A Colina Escarlate, o diretor voltou a encontrar um equilíbrio preciso entre os diferentes tons que pretende alcançar. Assim, é uma surpresa que as passagens mais memoráveis do longa sejam justamente aquelas que abraçam um caráter mais lúdico (umas até parecendo pertencer a um conto para crianças), dando origem a momentos belíssimos como a fantasia que, imaginada como um musical em preto e branco, traz Elisa e a criatura se divertindo como jamais poderiam. E se a cena ambientada numa sala de cinema serve como uma ligação curiosa do sentimento que existe no casal principal ao amor que o próprio del Toro tem pela Sétima Arte, o momento envolvendo um banheiro alagado é de um primor que só vem a ser igualado (e complementado) no fabuloso plano que encerra a projeção, estabelecendo também uma rima visual eficaz.

Mas é claro que, numa história que fala sobre um romance, é necessário que o próprio soe convincente (pensem no que Peter Jackson conseguiu em seu King Kong, quando nos fez acreditar que uma jovem nova-iorquina poderia se afeiçoar por um gorila gigante). É um alívio, portanto, constatar o jeito delicado como Guillermo del Toro conduz a narrativa e desenvolve as personalidades tanto da faxineira quanto da criatura, levando o espectador a compreender e aceitar a relação entre os dois: introduzida como uma mulher apegada a uma rotina e que busca um sentimento maior que ainda não surgiu (apesar das amizades que preserva com Giles e Zelda), Elsa vê no homem-peixe um reflexo inesperado de sua própria persona, desde a forma como aprecia gostos em comum até a dificuldade que tem para se comunicar. Depois de elaborar essa identificação com cuidado, o roteiro encontra a hora certa de introduzir a ideia de uma paixão concreta entre os personagens – e, por isso, torna-se possível entender a dinâmica entre o casal, pois observamos com detalhes toda a construção dramática que culminou nessa circunstância.

O desempenho de Sally Hawkins, por sinal, merece o reconhecimento que vem recebendo em premiações: vivida como uma mulher que parece vulnerável à primeira vista, mas que aos poucos revela atitudes que a tornam mais robusta do que poderíamos supor, Elsa é o tipo de pessoa que se diverte com pequenas fontes de alegria, projetando um entusiasmo quase infantil ao assistir a um número de dança na tevê e simular um modesto sapateado sem levantar do sofá. Além disso, Hawkins é igualmente bem-sucedida ao ilustrar a intensidade de Elsa nos momentos de maior tensão, atingindo um grau de energia, medo e determinação sem subtrair a naturalidade com que gesticula (e mais: o modo como se comunica encontra uma função cômica eficiente ao aliviar o peso de uma cena apreensiva, trazendo a personagem desejando coisas pouco lisonjeiras para Strickland sem que ele perceba).

Já o homem-peixe poderia perfeitamente ter saído de uma refilmagem de O Monstro da Lagoa Negra, dividindo uma série de semelhanças estéticas com o personagem-título do longa que Jack Arnold dirigiu em 1954 (incluindo o fato de ser brasileiro). Outro que deve ser lembrado é Doug Jones, que, dono de uma fisicalidade minuciosa e impressionante, sempre se destacou pela performance corporal que exibe sob maquiagem ou captura de movimentos – e, aqui, confere não apenas dinamismo, mas “alma” à criatura, que constantemente surge calma e observativa como se descobrisse com fascínio o mundo ao seu redor. (Diga-se de passagem, é nesses casos que podemos notar o quão vantajoso é investir em efeitos práticos: sim, é verdade que existem retoques digitais no rosto do personagem; no entanto, ainda é admirável que seu corpo seja concebido não como um modelo computadorizado, mas como uma peça física a ser mostrada diante de uma câmera – o que me leva a lamentar que A Forma da Água não esteja entre os indicados ao Oscar de melhor maquiagem.)

Aliás, talvez seja um delírio meu, mas o fato da criatura ser brasileira talvez gere dois resultados simultâneos: 1) remeter a O Monstro da Lagoa Negra; e 2) sugerir rapidamente que os Estados Unidos estão acostumados a entrar no território dos outros e sair tomando posse de tudo como se fossem os donos do mundo – e, mesmo que eu esteja forçando a barra aqui, isto não significa que A Forma da Água não insira discussões temáticas pontuais. O que nos traz, inclusive, ao vilão interpretado por Michael Shannon: obviamente comprometido com o chamado “American Way of Life” (sua devoção inclui não só dois filhos, uma tevê, um cachorro e uma esposa que é dona de casa, mas também a necessidade de ostentar um carro e os tais “valores norte-americanos”), o coronel Strickland é o verdadeiro monstro da história, exibindo um sadismo repudiável ao torturar o homem-peixe para fins “científicos”, divertindo-se ao amedrontar os que estão à sua volta, dizendo coisas indiscutivelmente racistas e – o mais revelador – acreditando que Deus se parece mais com ele do que com Zelda, que, além de mulher, é negra. Para completar, há também a presença de Richard Jenkins, que exala um calor humano contagiante e demonstra uma inclinação homossexual em certo instante (numa época onde as pessoas enxergavam isso com um preconceito ainda mais escancarado).

Concebido como um verdadeiro espetáculo visual (algo esperado num filme de Guillermo del Toro), A Forma da Água é deslumbrante desde a sequência que abre a projeção, mostrando um apartamento submerso que antecipa com elegância o que virá nas duas horas seguintes. E, se a imaginação do cineasta continua a ser exercitada, por exemplo, na figura do homem-peixe (que mais tarde passa a trazer luzes azuis em seu corpo), a fotografia magistral de Dan Laustsen dá origem a algumas imagens que mereciam ser impressas e emolduradas (como aquela já mencionada que finaliza o longa) ao passo que a trilha sonora de Alexandre Desplat acompanha com precisão a sensibilidade da relação tocante que une o casal principal. Por outro lado, a segunda metade da narrativa é um pouco mais extensa que o ideal, repetindo e/ou alongando algumas situações que poderiam ser agilizadas sem acelerar demais o ritmo da trama.

No fim, mesmo tocando ocasionalmente em questões sociais e políticas, A Forma da Água é um filme que fala mesmo sobre… amor – um amor refletido no vermelho das roupas que Elisa Esposito passa a vestir quando se apaixona e, claro, das portas da sala de um cinema. Afinal, trata-se de um espaço que, à sua maneira, tem tudo a ver com o objeto de adoração máximo de Guillermo del Toro: aquilo que ele próprio exerce como artista.

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