Dirigido por Mamoru Oshii com base no mangá de Masamune Shirow (que não li), O Fantasma do Futuro era um anime que certamente merecia ser visto mais de uma vez, já que a qualidade técnica da animação impressionava tanto quanto sua natureza cyberpunk ao passo que o roteiro revelava uma narrativa tremendamente complexa sem jamais menosprezar a inteligência do público, apresentando-se como um longa que poderia até ser de difícil compreensão, mas mesmo assim instigava o espectador a tentar decifrá-lo – o que, infelizmente, não pode ser dito a respeito deste A Vigilante do Amanhã: recriando a obra de Shirow em live-action, o novo filme dilui a densidade que poderia haver na trama e reinventa questões filosóficas de maneira superficial, resultando numa experiência visualmente belíssima, mas conceitualmente decepcionante.
Escrito por Jamie Moss, William Wheeler e Ehren Kruger (este último exerceu a mesma função nas três continuações de Transformers, o que não é um bom sinal), o roteiro se passa no ano de 2029 e nos introduz a uma sociedade acostumada a substituir partes de seus corpos por organismos tecnológicos fabricados pela Hanka Robotics, transformando pessoas em ciborgues. Neste mundo futurista, a empresa desenvolve um projeto para pôr um cérebro humano (chamado de “ghost“) dentro de um corpo cibernético (referido como “shell“); o que dá origem à major Mira Killian, que atua numa força anti-terrorista ao lado do comandante Batou. Após o caos se instaurar quando surge um hacker conhecido como Kuze, a androide é levada a solucionar o problema ao mesmo tempo em que começa a desvendar quem foi em sua vida passada e recuperar gradualmente sua humanidade.
É neste ponto que começam os problemas: em vez de se focar nos ciberataques de Kuze e explorar as questões existenciais que poderiam – e deveriam – estar presentes na trama, esta versão live-action prefere se resumir à condição de sub-RoboCop e dá uma importância descabida ao arco de Mira em busca de quem ela foi antes de ser robotizada. Isso, diga-se de passagem, gera um problema ainda maior ao tornar o longa disperso, já que passa a maior parte do tempo sem fazer a menor ideia de qual linha narrativa pode ser considerada a “principal”. Mas essa não é a única falha do roteiro, que reduz a filosofia do original a meia dúzia de frases imbecis achando que isto é o suficiente para que a obra soe inteligente ou relevante. E se as múltiplas interpretações que poderiam ser concluídas por quem assistisse ao anime são pasteurizadas a fim de facilitar o entendimento do público médio, os diálogos frequentemente alternam entre o expositivo e o risível (“Eles acharam que nós seríamos a evolução deles, mas a verdade é que evoluímos por nós mesmos“; “Você acha que ‘evoluir’ significa matar inocentes?“; “Este é o problema de ter um coração humano“; “Nunca mande um coelho para atacar uma raposa“).
Ainda assim, o que realmente incomoda no filme é a forma morna e (com o perdão do trocadilho) robótica com que a narrativa é conduzida tanto pela direção quanto pelo roteiro: a primeira erra ao realizar um trabalho frio, impessoal e aborrecido demais, soando desinteressante na maior parte do tempo – e, quando Mira começa a redescobrir quem ela foi em sua vida passada (até parece que isso foi um spoiler…), a impressão que temos é de que o longa está criando drama no piloto automático –; já o segundo basicamente se limita a copiar de modo preguiçoso alguns trechos do anime e interligar uns aos outros em meio a uma trama difusa e tola. Assim, quando A Vigilante do Amanhã começa a repetir o que já foi dito ou ilustrado em O Fantasma do Futuro, a sensação que fica é mais ou menos a mesma de ver um papagaio repetir um monólogo feito por um professor de Filosofia: o que ele está falando pode até ser exatamente a mesma coisa, mas desta vez está saindo da boca de alguém que não faz a menor ideia do que está dizendo. Por sua vez, Scarlett Johansson (uma atriz que considero talentosa) ao menos merce pontos pelo esforço que faz para que os dilemas da major tornem-se legítimos ou minimamente convincentes.
E se a direção de Rupert Sanders falha em conferir energia ou emoção à história, o mesmo não pode ser dito a respeito de seu estilo visual – aliás, quando consideramos que o trabalho anterior do cineasta foi Branca de Neve e o Caçador, fica difícil negar que o desempenho dele aqui é uma grata surpresa. Hábil ao empregar a câmera lenta sem que isso se transforme em mero exibicionismo, usando o recurso a fim de permitir que o espectador admire a imagem por mais tempo ou entenda com clareza a mise-en-scène, Sanders valoriza devidamente o design de produção e a aparência cyberpunk de 2029 através de planos abertos ou gerais, acertando também ao rodar as sequências de ação com cuidado e objetividade (vejam como é possível compreender o instante onde a protagonista corre por uma parede e atira num oponente, por exemplo). Além disso, é cada vez mais raro encontrar um diretor capaz de utilizar o 3D de maneira eficiente, dando origem a uma experiência que justifica o ingresso mais caro em função desta tecnologia.
Mas o que realmente impressiona em A Vigilante do Amanhã é sem dúvida alguma o brilhante trabalho do designer de produção Jan Roelfs, que cria uma visão futurista diretamente influenciada pela Los Angeles de Blade Runner e merece prêmios por seu desempenho aqui: além dos telões gigantes e dos hologramas igualmente colossais, o mundo urbano de 2029 é dominado por edifícios quilométricos e cores berrantes – que vão de encontro com o visual cinzento e esfumaçado das ruas. E se a fotografia de Jess Hall é digna de nota por apostar em tons dessaturados e escuros sem comprometer a versão 3D do longa, as pistas de automóveis contam com uma holografia que indica qual o sentido das ruas ao mesmo tempo em que os cidadãos habitando os cenários sempre contam com implantes robóticos criativos (um realizou uma cirurgia apenas para continuar bebendo; outro exibe uma linha de iluminação na têmpora que serve para receber ou compartilhar memórias; por fim, há uma gueixa que assume uma postura aracnídea). Em contrapartida, mesmo defendendo o aspecto cyberpunk da trama, a trilha sonora de Clint Mansell e Lorne Balfe, mas peca ao sugerir que o tema da animação de 1995 vai começar a ser reproduzido apenas para frustrar a expectativa do público logo em seguida (e acreditem: isto ocorre várias vezes).
Explicando de forma excessiva o passado dos personagens e o porquê de serem do jeito que são (qual a necessidade de mostrar como Batou ganhou aqueles olhos arredondados?), A Vigilante do Amanhã finalmente desaponta ao se render à mania hollywoodiana do whitewashing, substituindo figuras orientais por caucasianas no meio de um cenário em que a cultura nipônica é inquestionável. Não chega a ser um filme ruim, mas empalidece terrivelmente diante daquilo que a obra já foi em outras versões e que deveria permanecer sendo nesta reimaginação live-action.