Visto durante o Festival do Rio 2017.
Imagine um filme dirigido, escrito, produzido e estrelado pelo Kramer, de Seinfeld. Pois esta é uma boa forma de descrever The Room, que estreou em 2003 e logo se consagrou como uma das piores coisas já produzidas para o Cinema: obviamente concebido pelo misterioso Tommy Wiseau como um projeto sério e dramático, o longa era um festival de situações sem pé nem cabeça, diálogos inacreditáveis (“Diga-me: como anda sua vida sexual?“), atuações que atingiam níveis transcendentais de ruindade, personagens que surgiam do nada, tentativas bisonhas de emocionar o espectador e sequências de sexo que se repetiam como se tivessem saído de um soft porn dos mais vagabundos. E se você não acredita no que está lendo, é porque precisa ver a cena absurda onde o protagonista entra numa lojinha para comprar flores ou o instante em que ele imita uma galinha no meio de uma briga (teoricamente) tensa.
Aliás, a expressão “tão ruim que chega a ser bom” nunca foi tão bem representada quanto em The Room – tanto que as risadas involuntárias foram mais que suficientes para angariar uma legião de fãs (não é à toa que o trabalho de Wiseau ganhou o status de cult com o passar dos anos e ainda hoje pode ser visto em sessões especiais nos Estados Unidos). Para ter certeza do quão bizarra foi aquela produção, basta assistir a este Artista do Desastre, que conta toda a história por trás daquela produção: por um lado, é possível que alguns espectadores que não fazem ideia do que seja The Room não consigam acreditar em várias das loucuras que são mostradas aqui; por outro, quem já conhece a obra de Tommy Wiseau provavelmente verá o novo filme e aceitará tudo com uma facilidade óbvia.
Começando com um compilado de depoimentos onde nomes como J.J. Abrams, Kevin Smith e Kristen Bell relatam a admiração que têm por The Room, o longa é roteirizado por Scott Neustadter e Michael H. Weber com base no livro The Disaster Artist: My Life Inside The Room, the Greatest Bad Movie Ever Made, onde Greg Sestero conta as experiências que teve ao lado do amigo Tommy Wiseau e fala sobre a produção daquele que é comumente apontado como “o Cidadão Kane dos filmes ruins”. Dito isso, Artista do Desastre revela como Tommy conheceu Greg, mostra a partida da dupla para Los Angeles em busca de seus sonhos e reencena os dias que levaram à concepção de uma das maiores maluquices cinematográficas de todos os tempos.
É, como já é de se esperar, uma comédia escrachada que encara The Room como fruto de uma insanidade desgovernada – e, aqui, os muitos acertos de James Franco vão aparecendo: ao abraçar o bom humor sem quaisquer reservas, o diretor (e ator) se sai muitíssimo bem ao criar sequências hilárias como a que traz Tommy Wiseau falhando repetidamente ao tentar recitar algumas palavras (que, inclusive, se tornaram icônicas na obra original). Outro mérito de Franco encontra-se na maneira como ele mantém a comédia sem deixar de inserir toques pontuais de dramaticidade, o que dá origem a momentos que parecem simular uma seriedade como se esta fizesse parte de uma piada. Em contrapartida, também existem alguns instantes onde o filme flerta com uma carga dramática sem saber ao certo se isto faz parte de uma ironia ou não, o que soa mais como um sentimentalismo acidental que surge de vez em quando (e que é complementado pela trilha sonora de Dave Porter, que faz questão de salientar este drama sem nenhuma sutileza).
De todo modo, este é um tropeço menor num longa que consegue a incrível proeza de transformar Tommy Wiseau num sujeito ridículo, mas que nem por isso deixa de ser um sonhador: sim, é verdade que suas ações são sempre engraçadas e inusitadas, porém o filme jamais releva o fato de que suas intenções são boas. Assim, a performance de James Franco torna-se fundamental para que o público acredite numa figura naturalmente caricata como Wiseau, resgatando com perfeição seu olhar de peixe morto, seu tom de voz que parece embriagado, sua postura física espaçosa e seu sotaque supostamente polonês que faria Arnold Schwarzenegger se arrepender de ter nascido na Áustria. A eficácia de Franco é tão expressiva que ele consegue saltar entre comportamentos distintos com uma objetividade digna de nota: sua interpretação corporal é cheia de vitalidade desde a cena inicial, quando Tommy escala um aparato técnico; a ironia incutida em sua fala ao se proclamar como a “Bela” de A Bela e a Fera faz rir de forma sucinta; e as lágrimas que escorrem no seu rosto ao se sentir humilhado são convincentes e tocantes.
Mas o que realmente me conquistou em Artista do Desastre foi a honestidade do filme ao reconhecer o valor de seus (péssimos) colegas: embora percebam a podridão do material, as pessoas presentes na première que ocorre no terceiro de fato amaram The Room e tiveram uma experiência divertidíssima com ele – o que me faz voltar à excelente frase de Anton Ego em Ratatouille: “Nós, críticos, devemos encarar que até mesmo a mais simples porcaria pode ser mais significativa para alguém do que a nossa crítica“. Esta é uma das grandes complexidades da Arte, que nos permite gostar de algo mesmo sabendo seus muitos problemas. Sim, a função da Crítica é analisar a obra usando critérios parciais, que independem do gosto de terceiros, mas isto não significa que certos projetos possam ser descritos como “imprestáveis”, pois todos eles podem ter alguma serventia. (Isso porque nem parei para discutir o fato de que as piores produções têm muito a ensinar sobre a Arte em geral através de contraexemplos.)
Inteligente ao criar um clímax que beira à metalinguagem (confundindo as gargalhadas existentes dentro do filme com aquelas que certamente serão ouvidas ao vivo na sala de cinema), Artista do Desastre faz jus a todo o carinho que The Room invariavelmente gerou em seus apreciadores. E se o que Tommy Wiseau fez é um “desastre”, o mesmo não pode ser dito sobre o longa que conta sua história sob a ótica (respeitosa e admirável) de James Franco.