Antes de adaptar O Senhor dos Anéis para o Cinema e conquistar um status invejável, Peter Jackson sempre teve um sonho que parecia cada vez mais distante: refilmar King Kong, seu filme favorito desde os nove anos de idade. Claro que seria uma tarefa difícil, pois produções de grande orçamento ainda não eram a especialidade do cineasta e remakes envolvendo monstros (Godzilla) ou primatas (O Poderoso Joe e O Planeta dos Macacos) não faltavam em Hollywood. Mas aí, vieram os três filmes baseados na obra de J.R.R. Tolkien, os bilhões de dólares faturados nas bilheterias, os 17 Oscars e os elogios por parte da crítica e do público, permitindo que Jackson enfim realizasse seu sonho. O resultado? Um longa que, mesmo imperfeito, honra a criação de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, reinventando o clássico de 1933 sem deixar de homenageá-lo.
Escrito por Philippa Boyens, Fran Walsh e pelo próprio Peter Jackson (mesmo trio que adaptou O Senhor dos Anéis), o roteiro desta terceira refilmagem segue de perto o argumento do original, trazendo uma equipe cinematográfica encabeçada pelo diretor Carl Denham embarcando no navio S.S. Venture e partindo em direção à chamada “Ilha da Caveira”, um lugar misterioso e que só está presente num único mapa. Ao chegar lá, o grupo é atacado por nativos que se interessam pela jovem atriz Ann Darrow, sequestrando a moça a fim de entregá-la a uma criatura cultuada e conhecida como o “rei” Kong. Quando o monstro chega, descobrimos que se trata de um gorila enorme – e que, com o passar do tempo, se atrai por Ann. Com isso, Denham decide capturar Kong e levá-lo para Nova York com o objetivo de transformá-lo num espetáculo da Broadway; o que, obviamente, dá muito errado.
Exalando do início ao fim uma paixão notável pelo longa original, Peter Jackson acerta ao situar a trama nos anos 1930, já que, como comentei ao escrever sobre o clássico, um período em que o mundo ainda não tinha sido totalmente desbravado era perfeito para contextualizar uma história que, afinal, envolvia ilhas desconhecidas e monstros fantásticos. Além disso, as referências criadas por Jackson são sempre certeiras: em certo momento do primeiro ato, Carl Denham pergunta se Fay (Wray) está disponível para atuar numa obra, mas logo é lembrado de que ela “já está trabalhando num projeto da RKO” com um tal de “Cooper”; mais à frente, quando os personagens estão à bordo da S.S. Venture, um diálogo que Fay Wray e Bruce Cabot protagonizavam no filme de 1933 é reconstituído como se fizesse parte do longa que Carl dirige; ao quebrar a mandíbula de um tiranossauro, Kong “brinca” com a boca deste para se certificar de que está morto; durante a exibição do gorilão na Broadway, há uma orquestra tocando as melodias que Max Steiner compôs para o filme original; e assim por diante.
Por outro lado, limitar o projeto a um monte de referências poderia transformá-lo numa obra cínica, anacrônica e que depende demais da nostalgia para funcionar. Felizmente, Jackson percebe este obstáculo e jamais permite que sua refilmagem se resuma a uma mera declaração de amor, criando adaptações pontuais, mas que sempre favorecem a narrativa em vez de comprometê-la, Assim, o Jack Driscoll babaca e machista de outrora aqui dá lugar a um roteirista dedicado, ao passo que as ações de Carl Denham desta vez não são meramente gananciosas, mas um fruto da obsessão que o personagem sente em função do próprio fracasso. E se o longa de 1976 era óbvio na forma com que associava as torres do World Trade Center às montanhas da Ilha da Caveira, esta versão de 2005 desenvolve esta semelhança de maneira bem mais sutil: quando Kong e Ann estão sentados numa colina diante do pôr do sol, ela logo afirma que trata-se de uma paisagem “linda” e representa a palavra através de toques no peito – toques estes reproduzidos pelo gorila mais tarde quando contempla o amanhecer de Nova York à beira do Empire State Building.
Já o elenco é composto por figuras geralmente eficazes (os tripulantes da S.S. Venture, por exemplo, incluem Jamie Bell, Kyle Chandler e Andy Serkis): se Adrien Brody pouco tem a fazer na pele de Jack Driscoll (ainda que seus esforços sejam razoavelmente bem-sucedidos), Jack Black surpreende ao reduzir o timing cômico pelo qual costuma ser reconhecido, compondo Carl Denham como um sujeito terrivelmente cínico e que não hesita, por exemplo, em usar a morte de uns colegas para motivar outros, chegando à loucura de filmar cenas no meio de situações perigosíssimas (aliás, Denham é, aqui, um sujeito que parece constantemente torturado pelo fracasso, sendo incapaz de aproveitar os poucos instantes de êxito que lhe restam e tendo, como diz Driscoll, “um talento especial para destruir aquilo que mais ama“).
Por fim, Naomi Watts (excepcional em 21 Gramas) cria uma Ann Darrow bem diferente daquela do original (nem vou compará-la à Dwan de 1976, pois seria covardia): sempre beneficiada pelo roteiro, que acerta de imediato ao investir 10 minutos estabelecendo a vida pregressa da personagem no vaudeville, Ann exibe uma personalidade forte a ponto de refutar certos benefícios que podem ser descritos como verdadeiros milagres (afinal, ela é uma vítima da Grande Depressão). É notável, aliás, que Darrow seja uma mulher que jamais abre mão de seus princípios – e aqui entra outra novidade interessante: ao contrário das versões anteriores, ela se recusa a estrelar o espetáculo de exibição de Kong na Broadway por não admitir a crueldade com que este é tratado, optando, assim, por retornar a uma vida longe dos holofotes em prol de seus princípios. Assim, quando Kong se apaixona por Ann, é porque ela deu um motivo para isto: suas atitudes, afinal, são muito mais atraentes que qualquer outra coisa.
O que nos traz ao ponto alto do King Kong de Peter Jackson: a interação entre o primata gigante e a nova-iorquina. Enquanto a Ann Darrow de Fay Wray só ficava gritando horrorizada sem jamais reconhecer a afeição projetada por Kong, aqui a relação entre ambos com uma reciprocidade tocante – e mais do que isso: graças ao talento de Jackson, o filme consegue a incrível proeza de fazer com que um romance entre uma jovem loira e um monstro gigante soe convincente e plausível, soando como uma grata modernização de A Bela e a Fera. E, se acreditamos no apego entre os dois, em parte se deve à dinâmica construída pelo roteiro: primeiro, a brutalidade de Kong amedronta Ann; depois, ela emprega suas táticas de vaudeville para entretê-lo; ao negar que o “show” continue e se impor diante do animal, Ann exibe personalidade, coragem e atitude que impressionam Kong; quando este salva a moça de três tiranossauros, ela percebe o apego o gorila e passa a retribuí-lo; etc. A partir daí, torna-se possível entender e aceitar a proximidade dos dois, já que ambos se rejeitaram de primeira e aos poucos se atraíram naturalmente graças às suas personalidades magnéticas – e, por melhores que sejam as sequências de ação, os melhores momentos de King Kong são aqueles mais intimistas e, em alguns casos, poéticos (como a lindíssima cena no Central Park).
O mesmo brilhantismo se aplica à concepção da criatura que dá título ao filme: criada pela mesma WETA Digital que nos apresentou ao Gollum de O Senhor dos Anéis, o Kong de Peter Jackson transcende qualquer análise técnica que o público possa fazer, surgindo mesmo como um ser que, embora a partir de performance capture, soa surpreendentemente complexo e “humano”. Assim, a interpretação de Andy Serkis e a animação digital criada pela produção tornam-se fundamentais para que o gorilão ganhe vida – e o que mais me impressiona neste Kong é a expressividade em seu rosto: é possível compreender quando ele está enfurecido, feliz, triste, depressivo ou aliviado depois de encarar situações difíceis; e embora ele mate dezenas de pessoas ao longo da projeção, o público nunca deixa de encará-lo como a real vítima da história. E sei que muitos discordarão de mim, mas confesso que sinto um apego maior pelo Kong desta obra do que por Gollum (afinal, estamos falando sobre um personagem peludo – algo que desafia qualquer animador – e que se comunica através exclusivamente de suas expressões faciais).
Para completar, o design de Kong é igualmente rico e detalhista, oferecendo a ele uma aparência torturada que o faz soar fisicamente desgastado pelas batalhas que vive travando para garantir a própria sobrevivência (notem as várias cicatrizes em seu corpo e sua orelha direita sempre carcomida). E se a movimentação de Kong também impressiona (ele realmente age como um gorila), a computação gráfica empregada para recriar os arranha-céus de Nova York não deixa a desejar, especialmente no clímax da narrativa. Por sua vez, a fotografia de Andrew Lesnie desenvolve um contraste eficiente entre as ruas cinzentas da Nova York empobrecida dos anos 1930 e as paisagens verdes e ensolaradas da Ilha da Caveira (que, por sua vez, oscila entre o hostil e o fantástico), ao passo que o designer de produção Grant Major reinventa a estética daquela época com uma fidelidade admirável (seja nos figurinos ou nos cenários) e acerta ao incluir detalhes sutis, mas que muito dizem sobre a ilha que abriga o monstro-título (notem os esqueletos de gorilas gigantes que aparecem no solo da floresta e que indicam como Kong é o último sobrevivente de sua espécie).
Embalado pela trilha de James Newton Howard, que salta muitíssimo entre os momentos mais intimistas e aqueles de ação desenfreada, King Kong só não é uma obra-prima graças à sua duração terrivelmente extensa e – acima de tudo – ao seu primeiro ato fragilíssimo: criando piadinhas tolas e que chegam perto do constrangimento, o longa revela um inchaço tremendo ao encobrir todo o dia a dia dos personagens no navio, desperdiçando um tempo precioso com bobagens. Mas este não é o único problema: algumas cenas na Ilha da Caveira se estendem perigosamente além do necessário e, portanto, denotam uma megalomania que Peter Jackson deveria manter sob controle, resultando em um filme de três horas que poderia facilmente ser reduzido em pelo menos meia hora e que se torna um pouco cansativo até mesmo para os fãs do original. Isso sem contar que o quase-romance entre Ann Darrow e Jack Driscoll soa apressado demais, só não frustrando mais que a pavorosa sequência da debandada dos brontossauros (cuja artificialidade chega a ser engraçada).
Apesar destes excessos, porém, Jackson entrega um trabalho inegavelmente consistente, destacando-se na excelente cena que traz Kong lutando contra três tiranossauros e, claro, no clímax que, ambientado no topo do Empire State, envolve várias sacadas visuais ambiciosas, de tomadas aéreas estonteantes até planos inclinados, vertiginosos ou subjetivos que facilitam a imersão do espectador – e mais: para tornar a situação ainda mais complexa, Jackson cria mini-situações que ajudam a aumentar ainda mais a tensão já contida naquele desfecho, como o instante em que Ann está prestes a cair do prédio e é salva no último momento pelo gorila.
Mas nada que seja tão lindo quanto Kong e Ann sentados em uma colina enquanto admiram o pôr do sol ou “patinando” no Central Park congelado – dois momentos que, mesmo não trazendo diálogo algum, têm muito a dizer sobre ambos os personagens. E que, por isso, tornam-se inesquecíveis.