Rogério Sganzerla

Rogério Sganzerla | Cineastas do Corpo

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No início da década de 60, o catarinense Rogério Sganzerla parte rumo à São Paulo para cursar direito. Já situado, passa a escrever no  jornal O Estado de São Paulo, onde ganha espaço no Suplemento Literário e desenvolve seu (avançado) pensamento cinematográfico. Escreve entre 1964 e 1967, quando troca a máquina de escrever pela câmera e torna-se cineasta.

No intuito de retomar ao nosso presente a herança de um passado que insistem em apagar, o Depois do Cinema traz aqui a transcrição de três dos diversos textos que o cineasta escreveu para o Suplemento, na vontade de reerguer o pensamento de um pilar derrubado, não como mero documento histórico, como mera curiosidade, mas como uma quebra de paradigma, um eco berrante que impulsione a fuga do senso comum, da mediocridade dominante e do pensamento colonizado, e que nos permita chegar à crítica e, claro, ao cinema.

***

Segundo de três textos escritos por Rogério Sganzerla em 1965, nos quais o crítico e futuro cineasta teoriza sobre as características fundamentais de determinados cineastas, e como entendendo-as chegaríamos mais próximos da realização de um cinema verdadeiramente moderno. Os três são transcritos aqui a partir do livro Edifício Rogério, da Editora UFSC.

Lançado pela primeira vez em Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: 26 jun. 1965. Suplemento Literário, p 5.

por Rogério Sganzerla

– O cinema tem alma? – indaga o crítico francês Henri Agel no livro assim intitulado.

– Não, o cinema não tem alma; pelo menos o cinema de Howard Hawks, de Samuel Fuller, de Losey antes de Eva, talvez de Godard e de outros de certa tradição norte-americana, sobretudo Raoul Walsh[1]. Chamá-los-ei de “cineastas do corpo”, em oposição às pretensões dos citados como “cineastas da alma”.

É uma tendência desconexa e absolutamente incompreendida. Há casos individuais de cineastas que, filmando gêneros mais diversos (do western à comédia), propõem uma valorização das estruturas orgânicas dos personagens e das coisas, sem submetê-los à “expressão” de uma ideia de profundidade especial. São filmes em que não há uma estrutura lógica e intelectual, mas duas constantes fundamentais: apreensão direta dos corpos em conflito. A violência.

O corpo é um elemento do conflito: há a captação e não sua “expressão”, como tradicionalmente acontece. Estamos diante de um cinema sensorial, de um cinema físico[2].

A violência assume uma importância incomum; ela interessa não só no plano narrativo, mas no dramático, como em Lang. Surge em grande parte das criações artísticas atuais, talvez por exigir tratamentos antimetafóricos, pelo menos em muitas películas.

Losey usa-a de maneira a apreender caracteres sadomasoquistas dos personagens, conduzindo-a a um histerismo hiperdramático. Hawks é o especialista em Hollywood; não se pode esquecer Walsh e Fuller, com o que não é preciso dizer mais nada.

Os conflitos são exteriores. Por isto, apreensíveis com a pura visibilidade cinematográfica.

Os personagens lutam entre si, corpo a corpo e os filmes podem basear-se em outras relações: objeto-corpo, objeto-objeto (há a inclusão dos níveis animal, vegetal e mineral no nível humano). Hawks, Godard, Fuller são anti-humanistas; cineastas materialistas preocupados (mas não muito) com a destruição do homem pelos agentes externos, os meios criados pela nossa civilização (o avião; o automóvel; a metralhadora; o cinema, responsável pela morte dos personagens de Godard). O conflito resultante da oposição entre estes elementos resulta inevitavelmente na destruição de um deles: o homem ou o objeto, a máquina ou o animal etc. Sob este sentido, Acossado, Casa de Bambu, Scarface são tragédias físicas.

Isolados, estes elementos não portam nenhuma carga dramática; a relação comum e causa dos conflitos opositores é o movimento.

Se, nas tragédias físicas, a violência dirige-se irremediavelmente à destruição, o movimento converge a outro tema, à velocidade. Pode-se mencioná-los como pontos cardeais de um cinema físico.

Armadilha a sangue frio, filme inglês dirigido por Losey em 1960, e Scarface são filmes compulsivos, essencialmente baseados no eterno movimento, contínuo, ilimitado e autodestrutivo dos seres e objetos. Em Howard Hawks, a velocidade pode ser qualificada de automobilística; idem em Godard, em cujos filmes faz-se intenso uso de automóveis (como no cinema americano do passado, ocorria em muitos filmes seriados).

Critica-se o diretor de Uma mulher é uma mulher por movimentar as pessoas para que a câmera possa andar e dar demonstração de uma mobilidade imprevista, mas não se compreende ser justamente esta a sua condição: apreender o fluxo do tempo com a sucessão do espaço. E, acima de tudo, seus movimentos (de câmera, personagens e objetos) apresentam o que só os que possuem senso de cinema conseguem, a elegância. Muito diferente da elegância estilística de um literato ou teatrólogo, mas especificamente cinematográfica.

O movimento é um instinto que se opõe à segurança, plenamente encontradiça nas realizações dos cineastas da alma, que, pretendem penetrar no íntimo das pessoas através de seu encarceramento num restrito universo espaçotemporal, em ritmo lento.

Os cineastas do corpo captam os exteriores dos seres e coisas, valorizam as superfícies. Aí está um dos elementos de sua modernidade.

Esta valorização alcança, consequentemente, o tempo presente (o filme “sente o tempo” e este precisa ser determinado). Justamente como na literatura, notadamente no romance, em que o autor se preocupa em apreender uma situação com uma ótica objetiva e exterior, no instante atual.

Nas fitas de Hawks ou Godard não há um drama, no sentido tradicional da expressão. Evitam o prolongamento do conflito no tempo, o drama com suas implicações de passado e presente na consciência dos personagens. (O que o cinema italiano, de maneira quase geral, ambiciona fazer e foi conseguido em Os Cafajestes.) Filmam as situações como faria um cinegrafista de jornais de atualidades: sem obedecer a um passado, sem preocupar-se com o futuro e as cenas seguintes, sem relacioná-las a uma estrutura temporal. Registram-nas displicentemente e obtém uma fragmentação, a captação desordenada e de instantes livres, situados no presente. Trata-se do cinema, arte do presente e das aparências; próximo das atuais concepções de pop-art; de um cinema sem memória, em suma, de um cinema sem alma.

Tais autores são basicamente antiliterários; e o fato de Jean-Luc Godard transcrever longos trechos de Poe, seus personagens filosofarem ou citarem Faulkner e Leibnitz, não muda sua condição. Pois em essência propõe um universo que é o do cinema mesmo – mais do que propor, vive-o – os seres e objetos vistos de fora, através de um olho sensorial, a câmera.

Visão exterior é visão antipretenciosa, é simplificação das situações, reduzidas às suas verdades fundamentais e cinematográficas, isto é, exteriores e evidentes. Não há possibilidade de enganos ou mistificações.

Os cineastas do corpo tratam histórias consagradas, usam o chavão (relação concreta entre personagens, ao contrário das relações sutis, difíceis e contraditórias de conseguir-se no cinema: então apela-se para a literatura, para os diálogos salvadores da questão). Há o chavão visto sob um ponto de vista anatômico (Godard), fisiológico (Samuel Fuller), hipersensorial (Losey) ou o chavão propriamente dito (Hawks).

A história de Eva é eterna e imutável: o triângulo passional e o rebaixamento moral de um homem por causa de uma mulher sem escrúpulos; de Viver a vida é a de outra mulher que cai na prostituição devido a contingências monetárias; em Hatari! há os inevitáveis atritos entre herói e heroína que culminam, é claro!, com sua união; em Acossado um marginal mata um guarda, é perseguido até morrer. O chavão, último recurso de conservação de um universo cinematográfico ameaçado – condicionamentos, impurezas metafisicas, cartesianismos – não pode ser confundido com o lugar-comum, que mão falta nas realizações dos cineastas da alma.

O cinema moderno vive do clássico e do silencioso; absorve-os, recorre a eles. E sua tradição mais eminente é o chavão cinematográfico, proveniente do desenvolvimento da sétima arte nos inícios do século: que fita define melhor a situação do que Hatari! , obra incompreendida e inadmitida pela maior parte de críticos e cinéfilos?

Chamam “sensacionalistas” os argumentos de Fuller, porque estão baseados nestas aplicações: é o chavão que não se realiza (e evidentemente choca o espectador). O choque é maior ainda quando, depois desta impressão, ele finalmente se constrói como em Paixões que alucinam (Shock corridor), recentemente projetado nesta capital.

Os cineastas do corpo têm, como única revelação, o corpo, evidentemente. Godard em suas últimas obras parece afastar-se desta linha e partir para novas revelações: a mulher e o cinema, mas isto já é assunto para um terceiro artigo.

Em Hawks, Fuller, Godard, o pensamento está baseado na sua apresentação pessoal: o físico define o seu “tipo”, suas tendências e inclinações. Ao corpo confia-se as funções habitualmente reservadas ao diálogo: fazer o jogo da evidência.

Outra vantagem: se nos cineastas da alma há o dilema da “profundidade” (profunda, ou não?) tal não acontece nesses; as fitas captam as aparências, esta é a maneira de captação da realidade. O único drama é o fato de as aparências serem ou não enganosas. Não o são em Hawks e Godard; o contrário em Losey e Fuller.

Finalmente, quero acentuar que os cineastas do corpo não são, absolutamente, resultados exponenciais da arte cinematográfica. Seu valor é eminentemente relativo e condicional: a não pretensão em sondar certas profundidades difíceis e enganosas é um sintoma de maturidade, não uma renúncia, mas uma afirmação. Faço questão de frisar que os cineastas do corpo fazem um cinema provisório, irregular, moderno afinal, dando as bases para um desenvolvimento a posteriori, as lições e alicerces de um cinema futuro.

Sintomático que um dos temas mais frequentes nestes realizadores seja justamente o amor pelo cinema. E são eles os diretores mais “cinematográficos” da atualidade, que tendem a uma arte pura. Enfim, os cineastas mais próximos do cinema são justamente aqueles que praticam um cinema sem alma.

Por outro lado, a apreensão direta de uma realidade material, a exploração do concreto, a valorização da câmera e do presente, suas consequências, tudo isto parece levar a um caminho já apontado: a câmera cínica… [*]

 

[1] Há outros diretores que podem, de certa maneira, serem definidos como cineastas do corpo, já que realizam um cinema físico: Francesco Rosi, autor de O bandido Giuliano e A provocação, Benito Alzukaraki, com o primeiro episódio de Raízes e thrillers mexicanos; Humberto Mauro no Brasil: Michel Deville, diretor de Agora ou nunca etc.

[2] O tratamento do corpo é um dos segredos do cinema americano. Os grandes primitivistas ianques sabiam perfeitamente integrar os personagens no quadro de filmagem, dando liberdade ao ator, mas disciplinando-o mesmo assim. A realidade era apreendida através do contato direto câmera/personagens, o corpo era explorado através da representação naturalista – esta é uma das razões da decadência do expressionismo (e seu postulado: “o corpo é formalizado até servir como meio de expressão da mente”). Mesmo os neoexpressionistas americanos (Welles, Kubrick, Aldrich) fundem doses naturalistas com os ditames da escola, principalmente na questão do ator e sua presença diante do aparelho de filmagem. Infelizmente até hoje não se soube valorizar as pequenas fitas, que conseguiram excepcionais resultados deste tratamento.

[*] Nota do transcritor: Nesta conclusão, Sganzerla alude ao texto A “câmera” cínica (11 de julho de 1964), no qual analisa o uso da câmera nos filmes de determinados cineastas modernos, especialmente Howard Hawks, Samuel Fuller e Jean-Luc Godard. Para ele, esta câmera é aquela que “deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas”. Para ele, a câmera do cinema moderno reintegraria o “ser no ser, o objeto no objeto, o personagem no personagem” (vide a análise que faz do título do filme de Godard, Uma mulher é uma mulher: rejeitam-se os adjetivos que ordinariamente se atribuiriam à mulher e passa-se a enxerga-la como tal, a mulher). Esvazia-se da personagem qualquer psicologismo, sociologismo e moral previamente inserida: a câmera registra através de uma visão “pura e desdramatizada”.

 

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