Não sou gamer (como expliquei ao escrever sobre Warcraft), mas se existe uma franquia de jogos criada nos últimos dez anos que realmente me atrai, esta é Assassin’s Creed: do primeiro ao Black Flag (não joguei Unity e Syndicate por ainda não ter comprado nenhum console da atual geração), admiro a série desenvolvida pela Ubisoft graças não apenas às lutas, ao parkour ou às várias técnicas e armas adotadas pelos Assassinos, mas também às recomposições históricas que serviam como aulas bastante produtivas e a personagens cativantes como Altaïr Ibn-La’Ahad, Connor, Edward Kenway e, claro, Ezio Auditore da Firenze. Em contrapartida, confesso que nunca tive muita simpatia pela trama que envolvia Desmond Miles e sua luta contra os Templários que, no presente, eram representados pela maligna Abstergo Industries.
É uma pena, portanto, que esta adaptação de Assassin’s Creed para o Cinema se foque justamente na parte menos interessante dos games.
Roteirizado pelo mesmo Michael Lesslie de Macbeth e pelos mesmos Adam Cooper e Bill Collage de A Série Divergente: Convergente (mas que soma ingrata), o filme nos apresenta ao prisioneiro Callum Lynch, que foi sentenciado à morte por ter cometido um homicídio. No momento decisivo, porém, o personagem apaga e acorda nos laboratórios da Abstergo, uma corporação que descobriu um jeito curioso de acessar memórias genéticas: ao criar um aparelho chamado Animus, a empresa conecta uma pessoa à máquina e imediatamente torna-se capaz de rastrear as ações de seus antepassados. Com isso, os cientistas forçam Callum a reviver as aventuras de Aguillar, um membro da Irmandade dos Assassinos que luta contra os Templários em plena Inquisição Espanhola a fim de ocultar uma arma batizada de “Maçã do Éden”, que poderia de erradicar a violência através do controle global. Se eu seguir com esta descrição, posso acabar revelando detalhes que nem são tão surpreendentes, mas que o roteiro insiste em tratar como se fossem um grande mistério.
Cometendo o equívoco de passar muito mais tempo concentrando-se na chatice ocorrida nos laboratórios da Abstergo e resumir a história de Aguillar a três sequências de ação razoáveis, mas que não trazem conteúdo algum e que não rendem nem meia hora de projeção, Assassin’s Creed soa menos como filme e mais como um game jogado por outra pessoa – e existem razões claras para que isto aconteça: como se não bastasse o fato da trama envolver um protagonista que age sob a pele de outro indivíduo (como se realmente estivesse consumindo um jogo), o diretor Justin Kurzel pega emprestado diversos conceitos habituais da Décima Arte. As ações da Irmandade dos Assassinos se assemelham a três “fases”; cada uma conta com cutscenes que antecedem a pancadaria e definem o cenário em que estas missões se passam; e até mesmo conceitos como os de “game over” e “retry” são espelhados aqui. Não que manter certas tradições dos jogos seja uma receita fatal (e existem resultados brilhantes criados a partir da união entre Cinema e video games, como atestam Scott Pilgrim, Detona Ralph e Hardcore: Missão Extrema), mas não adianta inserir elementos de um meio noutro se este não será favorecido ou complementado enquanto linguagem.
Quanto ao trabalho de Justin Kurzel (que também comandou Macbeth, de 2015), pode-se dizer que algumas ideias eficazes surgem de vez em quando: as cenas de ação contam com tomadas aéreas que exploram bem os cenários em que estão situadas e conferem certa fluidez a alguns instantes pontuais. Da mesma forma, algumas características dos jogos são preservadas de modo decente e divertido, como a águia que aparece aqui e ali, o “assassinato aéreo” e o ato de “sincronizar o mapa”. Infelizmente, os acertos de Kurzel param por aí, pois os conflitos entre os personagens são constantemente registrados através de uma quantidade excessiva de cortes, movimentos de câmera tremidos e planos fechados demais – o que o cineasta não aparenta compreender é que, ao adotar esta estratégia, é preciso organizar os elementos que compõem a mise-en-scène e fazer com que a espacialidade dos cenários e as ações dos combatentes soem visualmente claras, o que não é o caso. Além disso, a obsessão do estúdio em garantir uma classificação indicativa mais leve para Assassin’s Creed (WTF?!) obriga o diretor a eliminar quaisquer traços de brutalidade, dando origem a espadadas, facadas, cortes e perfurações que não arrancam uma gota de sangue dos vilões. Para piorar, os confrontos do passado são entrecortados com relances de Callum golpeando o vazio no presente, o que frequentemente corta a imersão ao lembrar o espectador que aquelas cenas não passam de um “game” dentro de um filme.
Por outro lado, o designer de produção Andy Nicholson é bem-sucedido no pouco tempo que tem para reconstruir a Inquisição Espanhola, imaginando um lugar sujo e hostil que se complementa nas estruturas de madeira, nos prédios cujas fachadas estão se descascando e nas arquiteturas cheias de formatos abobadados – e este cenário do século 15 vai na contramão do caráter high tech que se vê nos laboratórios da Abstergo, o que cria uma oposição eficaz e notável entre passado e presente. Assim, é uma pena que a fotografia de Adam Arkapaw acabe se excedendo ao contrastar as cores quentes e amareladas de 1492 com os tons frios e azulados de 2016, dando origem a um longa cuja natureza visual pós-produzida soa gritante e terrivelmente artificial, além de desinteressante e enjoativa (o que só é piorado graças à fumaceira que encobre o passado e que parece ter sido incluída mais para disfarçar falhas técnicas do que para agregar valor estético à obra).
Servindo como mais uma evidência de que não adianta trazer nomes de peso se estes lidarão com um material de baixíssima qualidade, Assassin’s Creed submete atores invejáveis a papeis que vão do inócuo ao ridículo: não há como negar que Michael Fassbender é um artista exemplar, e é justamente por isso que é triste vê-lo em cenas como aquela onde canta Crazy, de Patsy Cline. (Aliás, o desenvolvimento de Callum Lynch é dos mais preguiçosos – e se o roteiro se dá ao trabalho de apresentá-lo quando ele ainda era criança, o mínimo que poderia ter feito depois desse prólogo era não resumir o herói a um sujeito truculento que fala meia dúzia de frases esquecíveis e cujo passado é definido de forma en passant.) E se Marion Cotillard serve somente como um guia que explica todos os absurdos da trama e conta com as falas mais tolas da película (“A violência é uma doença, como o câncer“), Jeremy Irons marca presença como um personagem que só começa a explicitar suas funções por volta da metade da projeção; e quando a produção resolve transformá-lo numa figura imponente, já é tarde demais.
Ainda assim, o que mais prejudica Assassin’s Creed é mesmo seu roteiro pavoroso e sem sentido: como se não bastasse a inserção de vários diálogos estúpidos e descrições toscas que são atiradas com a maior seriedade do mundo (“código genético do livre arbítrio”?!), o filme não apenas ignora o fato de que certos personagens necessitam de aprofundamento como também vai deixando de lado de algumas ideias promissoras que haviam sido introduzidas no início (como o envolvimento dos Templários na ONU, o consumismo como método de seduzir a população, as possíveis discussões envolvendo livre arbítrio e o custo da liberdade diante do fim da violência). Isso sem contar os furos e situações mal resolvidas (e aqui alerto que o restante deste parágrafo trará SPOILERS): por que os usuários do Animus subitamente decidem se rebelar contra os cientistas e guardas da Abstergo ao mesmo tempo? Como a companhia pôde ser burra a ponto de desenvolver uma máquina que ensinasse Callum a lutar tão bem quando o único propósito era acessar suas “memórias genéticas” para mapear a localização da “Maçã do Éden” (que estava num esconderijo pouco sutil, diga-se de passagem)? Sério que Lynch aceita a causa dos Assassinos após conhecer os espíritos de outros membros importantes da Irmandade? E se este evento não era uma memória, então… o que diabos era aquilo?!
(E antes que venham argumentos do tipo “Hey, essas incongruências existiam nos jogos!” ou “Mas essas situações são complementadas nos games!”, aproveito para reiterar o que sempre digo: adaptações nunca podem depender do material-fonte – e se este já continha as mesmas falhas, então… por que não consertá-las?)
Beneficiado ao menos pela trilha sonora razoável de Jed Kurzel (irmão de Justin), que funciona especialmente na ambientação das cenas ocorridas no passado, Assassin’s Creed comete um erro que deveria ser evitado a qualquer custo: levar o espectador a se retirar da sala de cinema com a mesma sensação impessoal de quando entrou. É, em suma, um longa tremendamente apático, frio e incapaz de entreter, não possuindo nem 1% da energia contida nos games e resultando numa experiência chata, monótona e tediosa.
Agora, resta esperar para ver se ainda me recordarei desta produção daqui a uma semana – e o fato de ter sido este o destino dessa adaptação é uma prova do imenso potencial desperdiçado.