Cinquenta Tons de Cinza não passa de uma tediosa declaração de machismo disfarçada sem muitos esforços pelos diálogos mais estúpidos imagináveis úteis apenas como forma de complementar situações igualmente imbecis protagonizadas por seres detestáveis. O roteiro, se realmente houver um, nos apresenta a Anastasia “Ana” Steele (ironizem este nome à vontade), uma jovem adulta virgem com baixa autoestima e que beijou apenas duas pessoas ao longo de sua vida. Um dia, é chamada para entrevistar o multimilionário Christian Grey, que logo passa a dividir um interesse amoroso para com Ana e se revela um adicto das atividades BDSM. O indivíduo oferece à mulher a oportunidade de se relacionar efetivamente com ele se assinar um contrato cujas normas a referiam como “submissa” e a proibiam de penetrar os próprios buracos, manter-se suja ou mal vestida, comer o que desejava, dormir o tempo que quisesse, tocar Grey livremente e até mesmo chamá-lo por qualquer nome que não fosse “senhor”.
Um ser humano com o mínimo de sensatez responderia com um “não” (no mínimo), mas por alguma razão, Anastasia se mantém em dúvida constante (quantas vezes uma de suas mãos foi ao seu rosto num gesto de incredulidade nesta leitura?). A partir do momento em que a hesitação por parte da protagonista surge, o filme passa a ser… apenas isso: um falatório insuportável, injustificável, inacreditável e incoerente onde seres repulsivos por razões que oscilam entre a burrice e a canalhice dialogam a respeito da insegurança diante da possibilidade de realizar absurdos.
Nada contra os praticantes de BDSM, mas, como qualquer tipo de relação, uma prática destas deve ser consensual. A maneira como Cinquenta Tons de Cinza aborda este tema, porém, é tão anacrônica e incorreta que chega a tratar a prática como algo abusivo em vez de fetichista. Assim, é criada uma dicotomia no melhor (ou pior) estilo “Bella e Edward” entre Christian e Anastasia, trazendo o milionário como um homem que se vê como uma abominação e um perigo iminente que deve ser afastado caso haja um interesse amoroso em potencial. Uma visão problemática e nada lisonjeira a respeito desses gostos específicos, algo que se torna sintomático até mesmo para o próprio Grey enquanto personagem: afinal, se há um rancor tão inseguro e desesperado que guarda de si próprio, por que toma atitudes tão incoerentes e segue sem conseguir se afastar de Ana do início ao fim da projeção?
Como o próprio falara ainda no primeiro terço do longa (não existe sequer uma divisão em três atos na estrutura desta narrativa), já se passaram ao menos 15 mulheres por sua cama e a consciência que preserva acerca de suas técnicas sensuais “perigosas” (percebam as aspas!) é vasta ao ponto de lhe conceder um Quarto Vermelho da Dor. Sendo assim, Christian é ilustrado como um personagem unidimensional e cujo estoque de atitudes incoerentes aparenta ser inesgotável, algo reforçado ainda por uma interpretação constrangedora de um Jamie Dornan que mantém uma expressão neutra e insípida desde o primeiro plano onde seu rosto surge na telona ao último. Não, o personagem toca piano após relações sexuais e tem um trauma de infância gerado graças à mãe viciada em crack e aos abusos que sofrera. É, Grey realmente é um indivíduo profundo e ambíguo. Aliás, essas duas últimas “constatações” (espero que os leitores tenham captado o sarcasmo de abras as frases), abrem portas para um complemento do problema citado no parágrafo anterior: se o BSDM que domina Christian provém de repressões da infância, um ar patológico é conferido tanto à prática quanto ao sujeito, o que além de eliminar qualquer generosidade da produção em debater o tema e trazer enormes inconsistências ao roteiro, dificulta uma identificação por parte do público em relação ao personagem e ao que a narrativa se propõe a discutir, tropeçando mais uma vez do ponto de vista temático e colapsando de vez pelo simples fato de depender deste.
Para coroar o desserviço moral representado por Cinquenta Tons de Cinza, o filme jamais consegue esconder um fato simples facilmente identificável quando consideramos que se trata de um Crepúsculo “realista” (cof-cof-cof!) e genérico: o machismo evidente. Dotada de uma baixa autoestima doentia, Anastasia é um ser humano tão debilitado e falho emocionalmente que chegamos a nos perguntar como a jovem consegue ser independente, pois sua insegurança é algo tão alarmante e perigoso que acarreta em dificuldades físicas preocupantes (como ela simplesmente tropeçou e caiu no chão ao abrir uma porta?!). Neste estado caótico, surge um homem para salvar a pobre donzela apenas para transformá-la num capacho simplesmente por estar enlouquecidamente apaixonado pela mesma, mas seus gostos peculiares (demais) tornam obrigatória a escravização da jovem; uma possibilidade que ela cogita sem chegar a uma resposta (como assim?!). Para se locomover, a narrativa obriga o roteiro a fazer de Anastasia uma pessoa tão, mas tão errática que nós, os espectadores, somos levamos a crer que a inocência burra da personagem integra um quadro patológico. Vê-la aceitando todos os presentes caríssimos dados por Grey sem questionar logo no início e ainda cogitar a possibilidade de se tornar submissa do indivíduo é algo pavorosamente reprovável não apenas para o público feminino, mas para qualquer indivíduo com um bom senso mínimo. E mesmo quando somos levados a crer que Anastasia finalmente superou sua estranheza surreal conseguindo uma liberdade, descobrimos que a hesitação prosseguirá nos próximos dois capítulos da série.
Como se o senso moral inquestionavelmente condenável de Cinquenta Tons de Cinza já não fosse o bastante, o filme é simplesmente deplorável nos detalhes que poderiam torná-lo minimamente suportável. Trazendo diálogos que chegam a impressionar graças ao embaraço, o roteiro leva a sério falas insanamente imbecis e surreais que contribuem para que sejamos incapazes de criar alguma empatia por Anastasia ou Christian. Dentre elas estão o “Não farei isso [não me recordo ao certo de como era], pois tenho um Q.I. alto” dito pela fêmea da relação animal, o “Não faço amor. Fodo. Com força” do macho e o “Não sou sádico, mas um dominador” dito pelo mesmo para ser continuado por palavras que o descrevem como… um sádico. Para piorar (sim, ainda é possível), os diálogos entre o canhestro casal são tão entediantes quanto inverossímeis, apostando num melodrama barato que se mantém onipresente apenas para tornar ainda mais artificial uma relação que já havia se mostrado artificial em seu próprio conceito – simplesmente não existe motivo algum para provocar um apaixonamento entre estes dois personagens (a grosseria/riqueza/poder do homem e queda desastrada da mulher não justificam uma paixão).
Embalado pelo que talvez seja o pior trabalho que o compositor Danny Elfman já produziu em sua carreira, o filme ainda conta com a trilha incidental mais óbvia e excessiva que se poderia conceber, o que resulta num constrangimento implacável que atinge seu ápice numa sequência que envolve uma “reunião de negócios” entre Anastasia e Grey. O mesmo se aplica à seleção de músicas cantadas, repleta de melodias “picantes” para transformar as cenas de sexo num embaraço ainda mais portentoso e outras obviedades (eu não me espantaria se uma canção de Sidney Magal acompanhasse os momentos teoricamente “meigos” e “fofos” entre o casal). Da mesma forma, os recursos visuais encontrados ao longo da narrativa são igualmente previsíveis, algo comprovado não apenas pelas cores sóbrias (cinzas, como Christian Grey) ou pelo vermelho pontual que indica toda a “safadeza”, mas pelos planos que trazem Anastasia mordendo os lábios e os lápis fabricados pela empresa de Christian ou pela própria loja onde a protagonista trabalha, onde o design de produção inclui tesouras e alicates semelhantes a genitais masculinos.
Moralmente ofensivo, chato como passatempo e ridículo ao desenvolver seus personagens, Cinquenta Tons de Cinza almeja discutir um tema de uma maneira tão inapropriada e titubeante que perde o foco com uma facilidade monstruosamente abominável e gera um questionamento preocupante: aonde pretende chegar narrativa e tematicamente após tantas confusões, equívocos, machismo e desrespeito? Pena que esta dúvida seja mantida até o encerramento da projeção, e a resposta promete vir em Cinquenta Tons Mais Escuros e/ou em Cinquenta Tons de Liberdade (que mal posso esperar para conferir…).
Mas se meu interesse já não foi despertado neste primeiro capítulo, não há motivos para me preocupar com os próximos dois – até porque, honestamente, a indagação mais significativa que levantei a mim mesmo (depois de “por que não fui assistir a Bob Esponja 2?”) foi “há alguma possibilidade das paródias pornográficas não serem tão superiores a esta porcaria?”.
Inferiores é que certamente não serão.