Quando o Homem-Aranha finalmente chegou aos cinemas, em 2002, o diretor Sam Raimi fez questão de conferir ao projeto uma personalidade própria: por um lado, o filme abraçava o espírito lúdico, fabulesco e até mesmo caricatural dos quadrinhos; por outro, existia também uma espécie de âncora no mundo real, o que ajudava a trazer peso dramático para algumas cenas importantes (algo que só evoluiu no soberbo Homem-Aranha 2). No entanto, as revitalizações que a franquia sofreu nos anos seguintes não trouxeram novidades drásticas em termos de estética: a versão estrelada por Andrew Garfield oscilava entre uma refilmagem (desastrosa) dos longas comandados por Raimi e uma tentativa (também desastrosa) de modernizar e complicar a persona de Peter Parker, ao passo que De Volta ao Lar, por mais divertido que fosse, ainda se via preso à abordagem padrão dos filmes do Universo Marvel.
Assim, é provável que este Homem-Aranha no Aranhaverso seja a primeira grande inovação envolvendo o personagem no Cinema desde a versão de Sam Raimi, já que, desta vez, os diretores Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman se sentiram à vontade para incluir uma série de particularidades que talvez não fossem permitidas em uma aventura “regular” (ou live-action) do Aranha.
E o resultado é, talvez, o melhor filme de super-herói dos últimos anos.
Em vez de transformar Peter Parker no centro das atenções pela milionésima vez, o roteiro de Rodney Rothman e Phil Lord (este último também produziu o longa ao lado de seu colaborador Chris Miller, com quem dirigiu Anjos da Lei e Uma Aventura LEGO) prefere se concentrar em Miles Morales, um adolescente que cresceu no Brooklyn, é fanático pelo Homem-Aranha e, ao ser picado por uma aranha radioativa, vê que ganhou os mesmos superpoderes do herói que lia nos quadrinhos. Depois que o Rei do Crime realiza um experimento perigosíssimo, um monte de dimensões diferentes se cruzam e, com isso, Miles acaba conhecendo personagens similares a ele, mas que vieram de universos alternativos – entre eles, estão Gwen Stacy, Peni (e seu “robô-aranha”), Peter Porker, o Homem-Aranha noir e uma versão mais velha do próprio Peter Parker. Desta maneira, os cabeças-de-teia resolvem unir seus superpoderes para impedir que o Rei do Crime cometa um erro ainda maior e, de quebra, encontrem uma forma de voltar aos seus respectivos mundos.
Conferindo ritmo, dinamismo e clareza a uma história que poderia se tornar confusa ou sem sentido caso caísse nas mãos dos roteiristas errados, Aranhaverso é particularmente hábil ao lidar com duas premissas distintas (a origem de Miles Morales e o encontro de vários universos alternativos) de maneira coesa e orgânica, sabendo juntá-las com uniformidade e impedindo que uma soe desconectada da outra. Ao mesmo tempo, os três diretores investem em um senso de humor que funciona muitíssimo bem e que se mantém na maior parte do tempo, servindo tanto para humanizar os personagens (ao afirmar que “não há tempo a perder“, Peter imediatamente corre com Miles para… comer hambúrguer numa lanchonete) quanto para divertir através do absurdo (o que se aplica, por exemplo, à sequência em que os Homens-Aranha fogem de um laboratório carregando um computador). E o mais surpreendente, no entanto, é que o filme faça rir com frequência, mas também saiba a hora de falar sério – e o momento em que Morales executa um “salto de fé” marca o amadurecimento geral do personagem, que finalmente compreendeu sua função como super-herói (se uma piadinha fosse encaixada à força no meio disso, a cena instantaneamente perderia seu aspecto redentor).
Outra surpresa proporcionada por Aranhaverso consiste em sua capacidade de fazer uma série de brincadeiras metalinguísticas – o que é sempre um desafio, pois é difícil levar um filme a se reconhecer como tal sem quebrar a imersão do espectador. Ainda na sequência de abertura, o longa resgata vários momentos famosos envolvendo o personagem (chegando a alfinetar a infame dancinha de Homem-Aranha 3) e estabelece que a simples presença do Homem-Aranha naquele mundo fictício inspirou todos os produtos que já existem na vida real (como doces, desenhos animados, jingles e até mesmo quadrinhos). Além disso, o recurso de pontuar as apresentações de cada personagem através de vinhetas que mostram capas de revistas revela-se elegante e inspirado, permitindo que o montador Robert Fisher Jr. pause pontualmente o andamento das cenas para inserir breves (e estilosas) explicações – e sem jamais quebrar ou comprometer o ritmo da narrativa.
O que nos traz a um elemento fundamental para o sucesso de Aranhaverso: seus personagens. Tornando-se um exemplo de inclusão simplesmente por ser um protagonista negro e descendente de latinos, Miles Morales se estabelece como um adolescente que passa por dificuldades com as quais qualquer um pode se identificar, como os conflitos que tem com seu pai, a incapacidade de socializar e a necessidade de aprender a lidar com sua insegurança (notem que, ao descobrir seus superpoderes, a reação do garoto soa como um misto de entusiasmo e medo). E acompanhar o amadurecimento de Miles é um exercício interessante por si só, já que cada etapa de sua jornada é definida com clareza e o personagem termina o filme diferente de como começou – algo que a excelente dublagem de Shameik Moore (da série The Get Down) exemplifica bem, investindo em uma voz esganiçada no início e aos poucos assumindo um tom mais grave.
Aliás, foi justamente essa vulnerabilidade que tornou Peter Parker tão querido – e, desta vez, o personagem surge como uma continuação lógica daquilo que nos acostumamos a ver nas versões anteriores: se antes seu senso de humor servia para despistar seu medo e para diferenciá-lo da persona do Homem-Aranha, aqui ele está presente até mesmo nos instantes em que Peter não está com o rosto coberto, pois a irreverência parece ter tomado conta do sujeito à medida em que os anos foram passando (o que está presente na composição vocal de Jake Johnson, que transmite cansaço, sarcasmo e agilidade em sua performance). Em compensação, a insegurança habitual de Parker continua a se manifestar, por exemplo, na forma como ele teme se reaproximar da amada Mary Jane, de quem se divorciou há algum tempo (o que acaba resultando em um dos encontros mais inesperados – e hilários – do filme).
Trazendo como vilão um Rei do Crime que, mesmo cruel e intimidador, exibe motivações surpreendentemente humanas e tocantes, Aranhaverso conta com a presença de Gwen Stacy em uma versão bem mais radical (e superpoderosa) do que as que haviam aparecido no Cinema, sendo admirável que a carismática Hailee Steinfeld a transforme numa figura ao mesmo tempo durona e simpática. Como se não bastasse, o filme ainda nos apresenta a três Aranhas com personalidades bem definidas e que inspiram, inclusive, a atmosfera dos ambientes nos quais se situam: a japonesa Peni é uma menina inteligente e moderna que faz tudo ao seu redor parecer saído de um anime; Peter Porker é um porquinho engraçadíssimo que usa bigornas e marretas para confrontar seus inimigos, remetendo aos Looney Tunes até mesmo nos efeitos sonoros que o acompanham; e o Homem-Aranha noir (dublado num tom de ironia constante por Nicolas Cage) encara tudo com uma dramaticidade que diverte graças ao exagero e que é complementada pelo visual sombrio e esfumaçado que define sua personalidade.
Mas foi com sua abordagem estética que Aranhaverso me conquistou – e me atrevo a dizer que Persichetti, Ramsey e Rothman realizaram, aqui, uma das mais bem-sucedidas transposições da linguagem dos quadrinhos para o Cinema (algo que Ang Lee tentou fazer em Hulk). Abrindo a projeção estampando um selo escrito “Approved by the Comics Code Authority“, os diretores encontram maneiras criativas de levar à telona recursos como balões de pensamento e retângulos que sugerem passagens de tempo, chegando a dividir a tela em várias “sub-telas” para permitir que o espectador veja uma única ação através de pontos de vista diferentes. Além disso, o filme inclui onomatopeias em vários momentos da narrativa, desde o instante em que Miles cai de um prédio e é acompanhado por um “Aaaaaaa!” até os sons de socos e disparos que aparecem escritos no meio das cenas de ação – e que o filme consiga encontrar espaço para essas brincadeiras visuais sem “poluir” a mise-en-scène é uma proeza e tanto.
O mais importante, contudo, é perceber como os diretores encaixam essas experimentações sem transformá-las em meras distrações, fazendo questão de situá-las organicamente dentro da lógica visual da obra. E algo que certamente contribui para isso é o estilo adotado pela equipe de animadores: investindo pesadamente em uma abordagem que busca recriar a estética dos quadrinhos (através de cores intensas e de uma granulação específica), o longa combina elementos de desenhos bidimensionais e composições computadorizadas, o que resulta em um traço que parece rabiscado, mas que ainda assim conta com uma dimensão que só poderia ser alcançada através de recursos digitais. E funciona perfeitamente – aliás, sou capaz de apostar que o estilo desta animação influenciará uma penca de outros projetos daqui para frente.
Tão frenético e dinâmico quanto Speed Racer ou Scott Pilgrim (outras duas obras que brincavam brilhantemente com suas linguagens), Homem-Aranha no Aranhaverso é uma experiência visualmente fascinante, mas que também não deixa a desejar em seus aspectos narrativos. Inclusive, sou capaz de dizer que, ao final do ano, esta animação dificilmente ficará de fora da minha lista dos dez melhores filmes de 2019 – e, para afirmar isso com tanta convicção ainda estando em janeiro, é porque o resultado deu certo mesmo.
2 Comentários
Que crítica incrível, li todas do Aranha e deixei essa por último pq esse é o meu filme favorito do herói! Você só me deu mais motivos para amar e quero dizer q já virei fã das suas críticas, vlw Pedro!
PS: Acredita que há uma cena alternativa do “salto de fé” que acaba exatamente numa piada e tira toda a graça do que é a melhor cena do filme pra mim?? Dei graças a Deus por não deixarem no filme e fazerem a maravilha que foi para as telas!
Muito obrigado, Davi! De coração, fico muito feliz que tenha curtido as críticas do Aranha e espero que venha a curtir as próximas cada vez mais e mais. <3
Ah, não sabia desta cena alternativa! Nossa, é nessa hora que vemos como, por pouco, uma escolha narrativa pequena poderia ter mudado tudo para pior. Que bom que não foi o caso. 🙂