Faz todo o sentido que o primeiro filme da série 007 a finalmente começar a reconhecer A Serviço Secreto de Sua Majestade como peça fundamental da saga tenha sido O Espião Que Me Amava, terceiro capítulo da era Roger Moore: em dado momento, a major Anya Amasova (uma das melhores bondgirls de toda a franquia) se aproxima de James Bond e cita de passagem algumas informações básicas a seu respeito, até chegar àquela que o faz mudar de compostura (“Já teve muitas amigas, mas se casou apenas uma vez. Esposa assassinada em…”) e ser interrompida por Bond, que responde “Ok, já provou seu ponto”. Faz sentido porque, assim como no longa que Peter R. Hunt dirigira cinco anos antes, O Espião Que Me Amava representa a primeira vez desde então que o vínculo amoroso entre 007 e uma bondgirl se revelou algo mais emocionalmente intenso e complexo do que um passatempo descompromissado. Aqui, tanto Bond quanto a mulher têm sentimentos reais, o que torna a missão mais pessoal.
Após uma das sequências pré-créditos mais espetaculares de toda a série (na neve, 007 foge esquiando de vários inimigos que o perseguem por todos os lados, culminando no salto em direção a um precipício aparentemente infinito e na abertura de última hora de um paraquedas que estampa as cores da bandeira britânica), O Espião Que Me Amava passa a se concentrar no misterioso sumiço de dois submarinos disparadores de mísseis nucleares, aparentemente sequestrados por um vilão anônimo. Com isso, o MI6 e a KGB resolvem se juntar para investir o caso, enviando o britânico James Bond e a russa Anya Amasova em uma missão conjunta – e nem preciso dizer que, no meio do serviço, os dois acabarão se envolvendo de maneiras extraprofissionais, certo? No entanto, enquanto a investigação procede, Bond e Anya são constantemente surpreendidos pela chegada de um grandalhão quase invulnerável e com mandíbulas de aço, identificado somente como Jaws e que, ao que tudo indica, é braço-direito do real vilão dessa história.
Hábil ao refletir na relação de Bond e Anya toda a dinâmica que separava (e, neste caso inusitado, unia) Reino Unido e União Soviética durante o período da Guerra Fria, O Espião Que Me Amava tem, na dinâmica entre a dupla, seu elemento mais fascinante: embora representando potências rivais, na prática os dois acabam transformando esta rivalidade num detalhe puramente profissional e quase irrelevante, já que, quando vistos numa escala mais íntima, os opostos se atraem naturalmente e em função do carisma e da tensão sedutora que tanto Roger Moore quanto Barbara Bach projetam um no outro. O que torna o romance ainda mais interessante, contudo, é que o “espião que me amava” descrito no título não é James Bond, mas (spoiler à frente) o agente soviético que 007 assassinara na cena inicial do longa e que era o amor da vida de Anya, levando esta a jurar matá-lo logo após terminarem a missão – e isso torna a dinâmica ainda mais complexa, já que, apesar disso, Bond não consegue simplesmente deixar de amá-la (olha a influência de A Serviço Secreto de Sua Majestade voltando aí). É uma pena, porém, que o desfecho do conflito entre dois represente uma das poucas decepções do filme, encontrando uma solução fácil e condescendente para um problema que vinha se mostrando tão eficiente do ponto de vista dramático.
De volta à direção depois de comandar o razoável Só Se Vive Duas Vezes, Lewis Gilbert puxa um pouco o freio com relação à veia cômica que vinha sendo injetada na série e que se extrapolou no filme passado, O Homem Com a Pistola de Ouro (que desagradou boa parte da crítica e desapontou nas bilheterias), operando um pequeno milagre ao dosar de maneira perfeita (e, a meu ver, improvável) o bom humor dos últimos capítulos e o retorno às origens mais dramáticas e agressivas da franquia. Assim, quando vemos Jaws soltar desajeitadamente uma pedra enorme em cima do pé e sentir a dor da pancada, somos levados ao riso sem que isso anule a ameaça representada pelo vilão – e, da mesma forma, toda a sequência em que o capanga ataca Bond pela primeira vez se revela esteticamente ambiciosa, com a fotografia de Claude Renoir usando sombras e escuridão para acentuar a imprevisibilidade acerca do que virá no plano seguinte e com a montagem de John Glen (este nome voltará à franquia) alternando elegantemente entre a ação e uma ópera. Na verdade, o único pecado de Gilbert é prolongar a ação que ocupa o terceiro ato por tempo demais, chegando ao ponto de torná-la particularmente cansativa e repetitiva.
Com uma das melhores canções-tema de toda a série (“Nobody Does It Better”, cantada por Carly Simon, para mim rivaliza com “Goldfinger”, de Shirley Bassey), O Espião Que Me Amava ainda tem o mérito de trazer aquele que é, sem dúvida alguma, o mais marcante de todos os capangas dos vilões de James Bond: o Jaws interpretado por Richard Kiel, que se estabelece como uma figura devidamente absurda, como os padrões das histórias de 007 exigiam. Simultaneamente divertido em seu exagero e ameaçador em sua postura, Jaws representa um perigo constante e palpável, levando o espectador a senti-lo como um real obstáculo para Bond (mesmo que não necessariamente tema pela vida deste) – e o desfecho que o personagem ganha no filme não poderia representá-lo de forma mais apropriada, assumindo de vez aquilo que já temíamos desde o início: nada pode pará-lo.
Assim, O Espião Que Me Amava se estabelece como uma grata surpresa em uma fase da série 007 que seria pontuada por altos e baixos. E não deixa de ser curioso que, mesmo que Roger Moore seja lembrado como o mais engraçado dos James Bonds, os melhores filmes de sua “era” tenham sido justamente os que mais se levavam a sério.