O aspecto mais comentado e cultuado na série Pânico costuma ser sua predisposição à metalinguagem. Isto não é surpresa para ninguém – e não duvido que a maioria dos leitores tenha soltado um “Aff, de novo isso?” ao se depararem com esta afirmação, de tão batida que ela é. Inclusive, em meu texto sobre o primeiro longa, comentei que um dos maiores méritos do cineasta Wes Craven e do roteirista Kevin Williamson era justamente conseguir criar um slasher movie totalmente consciente do subgênero ao qual pertencia e que ironizava as convenções deste equilibrando terror e humor, urgência e irreverência, na mesma medida (Craven era mestre nisso). Pois neste sentido, Pânico 2 se revela uma continuação formidável para aquele filme, já que, em vez de manter-se estagnado na mesma estratégia do primeiro (citar nomes de outros atores, títulos de outros filmes, clichês consolidados pela História do gênero, etc), este segundo capítulo de fato evolui a outro patamar o célebre elemento da tal metalinguagem.
Isto fica óbvio já na inesquecível sequência que abre o longa e que, passada dentro de uma sala de cinema (algo que possivelmente foi influência de Os Olhos da Cidade São Meus, uma pequena pérola dirigida por Bigas Luna em 1986 e que merece ser redescoberta), retrata o ataque de Ghostface a um casal (Jada Pinkett Smith e Omar Epps) que conferia a pré-estreia de Punhalada (em inglês, Stab), uma superprodução baseada nos eventos ocorridos no capítulo anterior. Em outras palavras: é como se os personagens de Pânico 2 fossem ao cinema assistir a Pânico; uma obra fictícia para nós, espectadores, mas “baseada em fatos reais” para eles – e só o fato de terem feito um filme de terror inspirado no massacre feito por Billy Loomis e Stu Macher, transformando uma tragédia em mero escapismo, já abre um leque de discussões a respeito de como a mídia e a indústria do entretenimento se portam como verdadeiros abutres diante de horrores reais, desde programas “jornalísticos” sensacionalistas até obras que glorificam a violência como se esta fosse divertida ou empolgante (ou, em outros casos, heroica).
Discussões estas que Pânico 2 leva até certo ponto (ora com mais profundidade, ora com menos): se a ideia de uma obra violenta induzir espectadores a cometerem atos violentos viria a ser melhor desenvolvida nos próximos filmes da série (aqui, ela é mais salpicada), a tendência dos personagens de se identificarem como pequenas estrelas em um mundo fictício e/ou lúdico que eles gostariam de compor – mesmo que o contexto ao redor deles seja de absoluta carnificina – encontra-se presente em toda a narrativa, desde a constante busca da jornalista Gale Weathers por histórias macabras (e que possam compor mais um livro sensacionalista sobre crimes reais) até o desejo de Cotton Weary (um jovem que foi injustamente preso pelo assassinato da mãe da protagonista Sidney Prescott) de usar a fama que conquistou após ser inocentado para ganhar um programa de tevê para ele.
E há Sidney e seu rápido interesse em atuar numa peça escolar – afinal, sua vida é repleta de emoções improváveis que só poderiam ser parte de… um filme (“Not in my movie”, dizia ela antes de eliminar Billy no original). Nada mais apropriado, portanto, do que o clímax de Pânico 2 se passar num palco, amarrando as pontas de uma narrativa que, iniciada com um assassinato numa sala de cinema e finalizada com outro num teatro escolar, é toda pautada pela espetacularização declarada do horror; por personagens conscientes de que fazem parte de uma trama de terror.
Pois se Pânico brincava e satirizava os slasher movies ao assumir-se como um, Pânico 2 vai além e se reconhece como algo ainda mais abrangente: um filme (uma encenação). Mais especificamente, uma continuação, uma “parte 2” – e, ao perceber-se como tal, o longa se vê livre para pensar, discutir e, às vezes, ironizar o próprio conceito das continuações de modo geral, prendendo-se a um ciclo que lhe permite repetir passagens familiares do original (Sidney dá outro soco em Gale) ao mesmo tempo em que traz os personagens conversando abertamente sobre o propósito (ou falta de propósito) de se fazer sequências e sobre o velho estigma de estas frequentemente serem inferiores aos originais (“Cite uma continuação que é melhor que o primeiro?”, pergunta um aluno da escola de Woodsboro, que é respondido por um colega com uma série de exemplos famosos).
Aliás, a percepção que Pânico 2 tem de sua natureza enquanto peça cinematográfica (irreal, fictícia, encenada) é tão grande – e escancarada – que as piadas criadas por Craven e Williamson vão além de simplesmente citar um ator famoso aqui, um filme conhecido ali e/ou uma convenção de roteiro acolá (como ocorria no longa anterior). Desta vez, não só há a brincadeira metalinguística de os personagens irem ao cinema assistir a uma obra da qual “fazem parte” como a própria barreira entre os atores reais e os papeis que interpretam é frequentemente testada – e, assim, o nome de David Schwimmer pode ser livremente mencionado num universo fictício que já inclui uma personagem interpretada por Courteney Cox (de quem foi colega em Friends), da mesma forma como esta tem permissão para citar nominalmente Jennifer Aniston em outro ponto.
Por falar em Courteney Cox, é notório o destaque que sua personagem ganhou aqui em comparação ao filme anterior (algo que só consigo atribuir ao sucesso crescente que a atriz vinha conquistando na tevê): se antes Gale Weathers era um abutre, uma jornalista sem o mínimo de sensibilidade que se interessava apenas nas histórias que poderia colecionar e que estava lá para servir de mais uma dor de cabeça a Sidney (sim, ela tinha a oportunidade de sobressair-se na ação no terceiro ato, mas isso não a redimia nem a tornava menos escrota), desta vez a repórter é elevada a um status mais digno, passando a correr atrás de Ghostface menos para “conseguir mais uma história” e mais para ajudar os outros a vencerem o assassino – e até o fato de Gale abandonar o vestido de repórter que usava no primeiro filme e surgir trajando roupas mais casuais (camisa branca, calça jeans) tem o claro propósito de ajudar a torná-la mais humana e menos fria. O que não quer dizer, contudo, que Neve Campbell não continue a ser uma heroína impecável, sendo eficiente o modo com que ela retrata Sidney como uma heroína menos inocente e mais durona em função da experiência que ela adquiriu com os eventos do longa original.
Pânico 2 é, em suma, uma continuação que tinha tudo para ser uma repetição fajuta e caça-níqueis de um sucesso anterior. Em vez disso, porém, preferiu reconhecer e satirizar a tendência que boa parte das continuações tem de ser justamente isso, tornando-se, assim, uma bela expansão não só do universo, mas da proposta do filme de 1996.