Um fenômeno recorrente em franquias que se prolongam por muito tempo (Batman, Superman, Velozes e Furiosos, Brinquedo Assassino, A Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13, etc) é o da tendência à autoparódia: chega um momento em que, depois de vários “capítulos” que seguem à risca uma fórmula pré-pronta e aproveitada à exaustão, a única saída que os responsáveis por estas sagas enxergam sem que seja necessário abrir mão dos clichês que criaram para si é o de declarar, em alto e bom som, que sabem que eles existem, como se pensassem “Está todo mundo cansado das fórmulas que adotamos e repetimos? Então vamos começar a ridicularizá-las em nossos filmes, antes que o público possa fazê-lo.”. Uma saída cínica, mas fazer o quê?
No caso de 007, isso se tornou particularmente claro em O Homem Com a Pistola de Ouro, segundo longa a trazer Roger Moore sob a pele do protagonista: embora a imersão cada vez maior no humor já viesse desde Os Diamantes São Eternos, foi aqui que ela atingiu seu ponto mais óbvio. Se antes James Bond apenas fazia comentários sarcásticos enquanto era perseguido pelos vilões ou ia para a cama com uma bondgirl, desta vez faz uma manobra absurda, em espiral, com um carro – numa ação que soa ainda mais hilária ao ser pontuada por um efeito sonoro que poderíamos esperar mais de um episódio dos Looney Tunes do que de um filme de James Bond.
O mais surpreendente, contudo, é que a gag (visual e sonora) em si funciona inesperadamente bem naquele que é seu objetivo principal: fazer rir. Ora, se uma obra se propõe a provocar o riso e consegue fazê-lo, como dizer que ela é ruim? Chamar as gargalhadas causadas por O Homem Com a Pistola de Ouro de “involuntárias” seria uma tentativa cínica e desonesta de negar ao filme um mérito que ele tem: o de conseguir entreter – mesmo que nem sempre o consiga.
Embora responsável por um dos melhores e mais influentes capítulos de toda a série 007 (Goldfinger), Guy Hamilton nunca foi um diretor dos mais interessantes (são dele também os medianos Os Diamantes São Eternos e Viva e Deixe Morrer). Em O Homem Com a Pistola de Ouro, a coisa se complica quando consideramos que o roteiro escrito por Tom Mankiewicz e reescrito por Richard Maibaum é uma bagunça completa, desperdiçando o potencial da premissa ao convertê-la em uma narrativa que atira para todos os lados e que se torna muito mais enrolada do que precisava. Assim, em vez de se concentrar na trama envolvendo o pistoleiro Francisco Scaramanga (vivido por Christopher Lee), sua arma e projéteis de ouro, seu terceiro mamilo e seu capanga Nick Nack, o longa inventa um jeito de incluir ninjas, mosteiros, treinamentos de artes marciais, o retorno do xerife J.W. Pepper (uma das piores coisas de Viva e Deixe Morrer, mas que aqui volta em uma participação até divertida e que o filme faz bem em levar até as últimas circunstâncias) e uma das bondgirls menos interessantes de toda a franquia (sua personalidade se resume à beleza e seu nome, “Goodnight”, serve apenas para fazer surgir o inevitável trocadilho “Boa noite, Goodnight”).
Dito isso, considerando o caos que é a narrativa, Guy Hamilton até realiza um trabalho espirituoso, criando sequências de ação que combinam humor e energia (como a ótima perseguição de Bond e J.W. atrás do carro – que depois se transforma em avião – de Scaramanga) e enfocando o esperado duelo entre 007 e o vilão numa quase alucinação (a maneira com que usa sombras e espelhos ajuda a manter o espectador sempre incerto do que virá pela frente, num mérito que também deve ser creditado ao designer de produção Peter Murton e aos diretores de fotografia Ted Moore e Oswald Morris). Ainda assim, é na comédia escrachada que o filme se destaca, sendo… inusitada, digamos assim, a inversão de expectativas acerca do tradicional capanga do vilão: se habitualmente eles surgem como gigantes corpulentos, desta vez a presença do pequeno Hervé Villechaize (o Tattoo dA Ilha da Fantasia) estabelece um contraste fantástico com a grandeza, por exemplo, de Oddjob e Jaws – e a última cena de Nick Nack no filme não só é um resumo perfeito do que a “era Roger Moore” era capaz de oferecer em seus momentos mais escrachados, como também é um atestado da competência de Moore para o humor físico.
Considerado por muitos como um dos piores capítulos de toda a série, O Homem Com a Pistola de Ouro de fato não é um grande filme e nem é particularmente memorável quando observado dentro do hall das produções protagonizadas por James Bond. Ainda assim, ele ocasionalmente surpreende com uma ou outra piada eficiente ao brincar com os clichês da franquia, ao assumir o absurdo da própria premissa ou, simplesmente, ao fazer rir.