1964: O Brasil Entre Armas e Livros é uma obra que carrega intenções podres e as executa de maneira ainda mais condenável. Produzido pelo Brasil Paralelo (um grupo de direita que vive atacando a esquerda e se dedicando ao revisionismo histórico), este documentário de Filipe Valerim e Lucas Ferrugem se diz isento e imparcial, porém claramente tenta convencer o espectador de que o golpe de 1964 não foi um golpe e que o regime militar (leia-se: ditadura) não foi tão ruim assim – e, para isso, os realizadores investem em uma série de mentiras, desinformações, manipulações descaradas e argumentos baseados em nada, tornando-se particularmente estúpido em seus esforços.
Dedicando-se única e exclusivamente aos depoimentos de figuras como Olavo de Carvalho, Flávio Morgenstern, William Wack e Laudelino Lima (este último administra um site chamado Verdade Sufocada, que, como podem perceber, é inspirado no título do livro escrito pelo Coronel Ustra), 1964: O Brasil Entre Armas e Livros consegue a proeza de se estilhaçar ainda nos cinco primeiros minutos, quando Percival Puggina surge afirmando que é “impossível entender o contexto da Guerra Fria sem tê-lo vivido” mesmo que, nas duas horas seguintes, o longa dê atenção a um monte de “especialistas” que obviamente nasceram depois do período sobre o qual estão falando – e quando o professor Rafael Nogueira (que, a julgar pela postura inquieta e pelo tom de voz frequentemente exaltado, sente um entusiasmo notável ao atacar a esquerda e ao defender os militares) apareceu contando que “Jango foi para Porto Alegre encontrar Brizola, que o teria convidado para uma tentativa de enfrentamento“, me restou constatar que o sujeito nem devia ser nascido na época e sequer apresenta prova ou mesmo fonte para o que está dizendo.
Isto, inclusive, é recorrente em 1964: O Brasil Entre Armas e Livros, que, reconhecendo que não há material suficiente para sustentar sua tese, apela para uma série de “meias informações” – e, em dado momento, o narrador (e co-diretor) Filipe Valerim comenta que as ligas camponesas semearam o que mais tarde se tornaria o MST, mas não desenvolve a ligação entre um e outro. Além disso, é sintomático que o documentário passe mais de meia hora resumindo (da forma mais burra possível) o nascimento da União Soviética e a disseminação do comunismo pela Europa e pela América do Sul, porém ignore a óbvia influência que os Estados Unidos tiveram nesta história (as palavras “Operação” e “Condor” não parecem existir para Valerim e Ferrugem). Em outras palavras: por mais que não assumam, os realizadores certamente acreditam que havia uma conspiração comunista ameaçando o Brasil e que a intervenção de 1964 evitou que o país virasse Cuba ou Venezuela. E mais: ainda repetem umas quinhentas vezes que houve apoio popular e midiático, como se isso tornasse a ação dos militares mais aceitável – e como se a História já não tivesse mostrado que nações inteiras são capazes de tomar decisões erradas.
O que nos traz ao ponto que mais interessa aos diretores e aos entrevistados: o golpe em si e a ditadura que se arrastou pelos 21 anos seguintes. Sem definir se o que ocorreu em 31 de Março de 1964 foi golpe ou revolução, o documentário tenta concluir que a intervenção se tratou de um “golpe do bem” – e, embora Olavo de Carvalho chegue a afirmar, com todas as letras, que os militares “fizeram cagada” ao permanecer no poder mesmo prometendo à população que isto não aconteceria, o próprio Olavo volta alguns minutos depois falando (em tom elogioso) que os militares escolhiam os cargos públicos baseando-se somente nos méritos técnicos dos ocupantes, sem o famoso “toma lá, dá cá”. Mas o pior, no entanto, é o tratamento que Valerim e Ferrugem oferecem às torturas praticadas nos porões da ditadura e que, como não podem ser desmentidas, são “amansadas” aqui na medida do possível. Observem, por exemplo, como a narração enfatiza o fato de que estas atrocidades “vinham desde a Era Vargas e não tiveram fim no período militar” (como se os militares fossem “menos responsáveis” só por não serem pioneiros na prática da tortura).
Chegando ao ponto de dizer que a esquerda “aplaude e comemora a barbárie” ao produzir eventos e filmes “exaltando” Carlos Marighella (neste instante, o pôster do longa que Wagner Moura está dirigindo sobre o guerrilheiro – e que ainda nem foi lançado – surge em cena), 1964: O Brasil Entre Armas e Livros é, para piorar, um documentário plasticamente ridículo que mal consegue esconder suas táticas de manipulação. A trilha sonora, em especial, é a que mais chama a atenção, fazendo-se presente do primeiro ao último segundo de projeção, ressaltando a tensão através de melodias dramáticas e marcadas por notas graves, enaltecendo o poder dos militares a partir de composições “heroicas” e investindo em saxofones e triângulos infantiloides para fazer Jânio Quadros parecer uma figura patética.
O que, de todo modo, não chega a ser tão cafona quanto a vinheta do Brasil Paralelo, que se pretende grandiosa a ponto de remeter à abertura de Game of Thrones (o que, confesso, me fez rir). Ah, sabe do que mais? Vou parar por aqui, pois acho que já perdi tempo demais com 1964: O Brasil Entre Armas e Livros. Um troço como este não merece tamanha atenção.