Observação: me senti na necessidade de detalhar alguns trechos específicos de A Chegada. Para manter o respeito com o público – que pode não ter assistido ao filme ainda –, coloquei avisos que indicam com clareza onde os spoilers começam e terminam.
Uma das coisas que mais me alegram como cinéfilo é ter a clara sensação de que a História do Cinema está se formando diante dos meus olhos (e acredito que não sou o único a sentir isso). Daqui a algumas décadas, quando as próximas gerações pensarem nas décadas de 2000 e 2010, vão se lembrar de diretores como David Fincher, Martin Scorsese, Paul Thomas Anderson, Quentin Tarantino, Joel e Ethan Coen, Darren Aronofsky, Christopher Nolan, George Miller, Wes Anderson e outros. Entre estes nomes, há a presença ilustre e inquestionável do canadense Denis Villeneuve, que já se consagrou através de Politécnica, Incêndios, Os Suspeitos (a versão de 2013), O Homem Duplicado e Sicario. E ter a oportunidade de testemunhar o surgimento de uma obra como A Chegada é mais que um contentamento; é um privilégio.
Baseado no conto História da Sua Vida, de Ted Chiang, o roteiro nos apresenta à linguista Louise Banks, que parece carregar uma grande tragédia em seu passado (e retratada numa abertura capaz de emocionar até o mais frio dos espectadores). Quando 12 naves extraterrestres no formato de conchas se instalam em pontos variados da Terra, um coronel convoca Banks para tentar compreender a linguagem dos alienígenas e, enfim, estabelecer uma comunicação pacífica com eles (que se expressam através de símbolos circulares). Como é de se antever, trata-se de uma missão complicadíssima que se torna ainda mais difícil graças às decisões de certas autoridades exteriores, que parecem mais interessadas em atacar os OVNIs do que em endentê-los – e é neste ponto que Louise terá que se destacar, o que implica em desdobramentos tão surpreendentes que… não, é melhor evitar spoilers.
O primeiro aspecto que chama a atenção em A Chegada é a capacidade de imersão idealizada por Denis Villeneuve – o que, pelo visto, é uma de suas especialidades, lembrando que ele nos levou a compadecer diante dos dramas e obsessões vividas pelos personagens de Prisoners, fez com que sentíssemos a complexidade encarada pelo protagonista de O Homem Duplicado e transformou a Cidade do México numa zona de guerra das mais ameaçadoras em Sicario. Aqui, o cineasta desperta calafrios ainda no primeiro ato ao trazer um plano longo que explora a grandiosidade de uma locação contornando a enorme nave e sobrevoando uma base militar que, de longe, se assemelha a uma maquete, oferecendo também um contra-plongée (ângulo de baixo para cima) que enaltece a magnitude da concha ao mesmo tempo em que referencia o monólito de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Igualmente deslumbrante é o instante, por exemplo, em que a câmera lentamente se adentra no corredor vertical do OVNI, permitindo que o espectador sinta que está, de fato, sendo transportado (com cautela) para as estranhas do imenso objeto.
Depois disso, quando finalmente temos a oportunidade de conhecer o interior da nave, Villeneuve passa a usufruir de seu talento para contextualizar sacadas visuais imaginativas, chegando a posicionar a câmera de ponta-cabeça a fim de ilustrar a ausência de gravidade num cenário. E há um detalhe que não pode ser ignorado quando dissertamos sobre a experiência evocativa em que consiste A Chegada: desde os momentos iniciais, o público acompanha incessantemente a narrativa através da ótica de Louise Banks – e não é à toa que, quando a personagem encara o centro antigravitacional da concha, o diretor logo utiliza a câmera subjetiva de um modo que, nos últimos tempos, só me recordo de ter sido superado em Hardcore: Missão Extrema, filme de ação rodado em primeira pessoa. Além disso, o trabalho de mixagem de som visto aqui merece, no mínimo, uma indicação ao Oscar: quando Louise está num cenário onde o barulho é predominante e põe um headphone para dialogar com outras pessoas, nós também passamos a ouvir melhor o que está sendo dito por quem contracena com a protagonista; quando ela está num campo num instante intimista, escutamos somente sons diegéticos; e quando Banks começa a refletir sobre sua vida trágica, todos os sons (naturais ou pós-produzidos) são cortados para que possamos sentir com mais clareza a distração acompanhada da sensibilidade.
O mesmo grau de ambição pode ser observado na excelente e ousada trilha sonora composta por Jóhann Jóhannsson, que trabalhou em A Teoria de Tudo e vem se tornando colaborador habitual de Villeneuve: em vez de se esforçar para criar melodias belas e memoráveis, o profissional é movido mais pelo objetivo de complementar o sentimento de estranheza através de ruídos e reproduções fidedignas de sons naturais (por outro lado, como não se emocionar com os violinos melancólicos da música On the Nature of the Daylight, de Max Ritcher?). Por sua vez, o diretor de fotografia Bradford Young é digno de nota ao contrapor os tons cinzentos que dominam o cotidiano mórbido de Louise antes dela partir na missão com as cores quentes que passam a integrá-lo depois, quando os campos amarelados e bucólicos entorno da nave indicam que alguma “vida” começou a preencher o âmago da protagonista. Da mesma forma, o visual esbranquiçado e enevoado confere pureza à habitação dos alienígenas, transformando-a numa espécie de “paraíso” decisivo para a heroína.
Concebendo imagens simbólicas, como aquela (belíssima) que mostra Louise ao lado do físico Ian Donnelly cercados por uma dupla de extraterrestres – representando, portanto, uma união harmoniosa entre humanos e seres de outros planetas –, A Chegada conta também com a magnífica montagem de Joe Walker, que mostra-se hábil ao transitar com fluidez entre períodos diferentes da vida de Louise e começa a alternar entre passado e presente com mais frequência à medida que a trama avança. E se critiquei pesadamente Pequeno Segredo por desperdiçar uma ideia criativa graças a uma montagem frágil, aqui preciso aplaudir o plot-twist que funciona e surpreende justamente por causa da estrutura narrativa mantida pela montagem e pelo roteiro, representando uma reviravolta tão inesperada (e inteligente) que descrevê-la seria algo trabalhoso independente do fato de ser ou não um spoiler. Para completar, Walker também atrai especialmente nos momentos onde cria montagens paralelas, unindo três situações aparentemente distintas, mas que têm alguma similaridade a fim de retratar um instante em que Louise reflete a respeito de sua vida.
Completando a imersão, Villeneuve e o roteirista Eric Heisserer fazem questão de situar a trama num universo realista e palpável; afinal, como reagiríamos caso alienígenas viessem à Terra? Dito isso, o que temos aqui é um filme de “invasão” extraterrestre onde as aspas são fundamentais: em vez de sequências megalomaníacas como as de Independence Day, o que vemos em A Chegada são indivíduos tentando estabelecer uma comunicação pacífica com seres de outro planeta em vez de atacarem irracionalmente, o avanço da relação entre humanos e heptapods (como eles passam a se chamar) e nações que agem de acordo com o impulso de declarar guerra. Neste sentido, é preciso elogiar a eficácia do roteiro e da direção, que evitam explicações desnecessárias apesar dos conceitos intrincados que surgem no decorrer da projeção – aliás, este é um projeto que jamais poderia ser comandado por Christopher Nolan, que empregou um didatismo excessivo em seu mediano Interestelar.
(ATENÇÃO: os próximos três parágrafos trarão SPOILERS!)
Todavia, destrinchar os significados da obra é um exercício que pode render horas de uma discussão instigante – e, como a boa ficção científica que é, A Chegada comenta um pouco a respeito da Humanidade a ponto de mudar a percepção que podemos ter sobre alguns temas. A princípio, pode-se dizer que se trata de uma história de “invasão” alienígena inventiva, mas quando começamos a analisar as “camadas” do roteiro, logo percebemos que o longa faz uma reverência mais que apropriada à linguagem e, a meu ver, à necessidade de enxergá-la e preservá-la. Assim, se uma personagem finalmente entende a comunicação dos heptapods e dispensa o perigo de uma guerra, sua noção de tempo é radicalmente alterada. A linguagem, a compreensão e o diálogo são capazes de mudar ou esclarecer tudo, desde as relações entre espécies até o próprio destino das civilizações, passando – é claro – pelo tempo (afinal, não se esqueçam que este conceito está interligado ao de espaço).
E há, no meio disso tudo, o amor. Na tocante cena que abre a película, vemos Louise acompanhar o crescimento de sua filha Hannah (com direito a raccords que conectam frases como “Eu te amo!” a outras como “Eu te odeio!“) até que ela morre em decorrência de uma doença rara. É de se imaginar que aquilo se passa antes da trama ter início – mas o grande plot-twist que abordei no sexto parágrafo e que surge no terceiro ato revela que, na realidade, a vida de Hannah ocorreu após a chegada dos heptapods, indicando que a protagonista enfim compreendeu a linguagem dos extraterrestres e, com isso, assumiu uma percepção alternativa e não linear do tempo. Sendo assim, o que leva Louise a casar-se, dar à luz e percorrer uma trajetória mesmo sabendo que esta terá um destino trágico? Porque ela amou, e isso é o que realmente importa. Não interessa se o desfecho foi traumático; a jornada que conduziu Banks até lá é preciosa demais para não ser vivenciada.
Revelada com uma personalidade introspectiva e pesarosa, Louise parece carregar cicatrizes emocionais deixadas pelo “passado” tenebroso – que, como já foi dito, era uma visão do futuro. Posto isto, Amy Adams se sai muitíssimo bem ao ilustrar a morbidez que reside no interior da personagem através de olhares frios, falas ditas num tom monocórdio e movimentos corporais pouco expressivos, sugerindo que a protagonista carrega dentro de si uma vida desestimulada e que poderia ser descrita como “semi-morta”. Estas são as feridas nitidamente deixadas pela tragédia que ocorreu envolvendo Hannah – e não é por acaso que, ao ser questionada sobre gravidez, Banks exibe uma reação curiosa através dos olhos arregalados e da negação levemente eufórica. No entanto, as marcas começam a ser postas de lado quando o ânimo de Louise é atiçado a partir da vinda dos alienígenas, algo que suscita a necessidade de pôr em prática aquilo que a personagem faz de melhor: estudar linguagens. E quando finalmente consegue compreender os símbolos que os heptapods usam para se comunicar, ela atinge um nível de excelência atípico para reles seres humanos, transformando-se em mais um belo exemplo de mulher forte.
(Aqui, se encerram os SPOILERS.)
Pode parecer precipitado dizer que estamos diante de um clássico recém-nascido, mas o fato é que tal status é mais que merecido, pois esta é uma daquelas obras que nos fazem recordar os motivos que tornam a ficção científica tão poderosa e consagram o Cinema como uma Arte tão rica. E é bom que A Chegada seja um dos títulos mais fortes na corrida pelo Oscar, já que é, ao lado de Aquarius, um dos melhores filmes de 2016.
Denis Villeneuve nasceu para ser cineasta.