Nos portões da fábrica dos chocolates Wonka, cinco crianças de estados e países diferentes aguardam – junto aos respectivos responsáveis e milhares de interessados – a permissão para poderem entrar no local quando, de repente, surge um homem cuja figura é magnética: um paletó roxo-ameixa; uma cartola amarronzada; calças bejes; uma bengala; cabelos dourados (como os cupons que distribuiu pelo mundo); uma gravata das mais extravagantes; e um suposto problema físico que o leva a mancar numa velocidade extremamente lenta. Este é Willy Wonka, que, ao se aproximar dos portões, finge uma queda brusca somente para, em seguida, surpreender a todos com uma cambalhota. A partir daí, já está estabelecida uma breve síntese da personalidade do homem que virá a dominar toda a segunda metade de A Fantástica Fábrica de Chocolate: trata-se de um sujeito intrigante e carismático, porém imprevisível e que sempre pode estar pensando no oposto daquilo que podemos supor.
Esta é talvez a maior, mas apenas a primeira das muitas qualidades do filme. Inspirado no adorável livro que Roald Dahl (Os Gremlins, Matilda, BGA – O Bom Gigante Amigo) escreveu em 1964, o longa que Mel Stuart dirigiu em 1971 nos apresenta a Charlie Bucket, um menino humilde que vive na companhia da mãe e dos quatro avós adoecidos. Num universo em que a população é apaixonada pelos doces Wonka, o dono desta marca anuncia algo que se resultará num pandemônio global: cinco cupons dourados estão guardados dentro de embalagens de barras de chocolate espalhadas pelos quatro cantos do mundo, e aqueles que encontrarem tais bilhetes serão convidados a visitar a fantástica fábrica comandada por Willy Wonka – que, por sua vez, sempre se manteve fechada para evitar riscos de espionagem por parte da concorrência. Sendo assim, as crianças premiadas são Augustus Gloop, Violet Beauregarde, Veruca Salt, Mike Teevee e – graças a uma surpresa do destino – Charlie, que são acompanhadas de um de seus responsáveis para entrar no universo em que os melhores chocolates do mundo são criados.
Narrado e dirigido em tom de fábula, A Fantástica Fábrica de Chocolate se passa num universo assumidamente fantasioso e, por isso, funciona de modo bastante eficaz, já que, caso Mel Stuart tentasse se calcar em algo mais próximo da realidade, a trama certamente soaria absurda e tola demais para ser levada a sério – e neste sentido, os primeiros 40 minutos da projeção divertem graças à inocência que envolve a premissa e rendem momentos cômicos verdadeiramente hilários (como a máquina que se recusa a decifrar a localização dos cupons dourados, o repórter que não sabe dizer o que é mais importante do que a busca pelos bilhetes, o sequestrador que quer trocar seu refém por uma caixa de chocolates Wonka e um psiquiatra que se interessa demais por um sonho de seu cliente). Diga-se de passagem, Stuart é bastante hábil em provocar risadas a partir de imagens que, graças a um detalhe pequeno e notável, chamam a atenção; como aquela que traz um jornalista com um par de chifres atrás de sua cabeça.
Além disso, após as cinco crianças entrarem na fábrica, a trama passa a se transformar numa espécie de “teste de caráter” (no qual o aplicador, claro, é Willy Wonka) em que todos os malcriados serão eliminados assim que começarem a exibir seus comportamentos incorretos; e, desta forma, claro que Charlie se destacará, pois é o único do grupo que nutre o bom-mocismo em sua persona. Com isso, o longa (assim como o livro) torna-se competente ao ensinar bons valores aos infanto-juvenis e transmitir sua mensagem principal: uma boa ação brilha num mundo desgastado (palavras do próprio Wonka, por sinal), e não é à toa que as poucas atitudes questionáveis tomadas por Charlie acabam lhe prejudicando – até ele desfazê-las com um ato de bom-caratismo. Como se não bastasse, o filme também é bem-sucedido ao retratar como a caçada pelos cupons dourados desencadeia um verdadeiro tumulto internacional (que, verdade seja dita, ainda hoje encontra ecos em diversas “febres” despertadas pelo entretenimento e pela cultura popular).
Por falar em Charlie, vale destacar que, embora Peter Ostrum esteja fazendo um esforço tremendo para parecer um “coitadinho”, o menino acaba conquistando a simpatia do público por conta de seus gestos de honradez e generosidade, mostrando-se adorável desde o afeto que demonstra pelos avós até o ato de se recusar a praticar uma desonestidade em prol da riqueza. E se seu avô poderia ser encarado como uma má influência, ao menos o desempenho de Jack Albertson despista esta visão com uma ternura impressionante (e sua dinâmica com Charlie não poderia ser mais delicada). Completando o elenco, as outras quatro crianças que visitam a fábrica de chocolate surgem como reflexos imediatos dos estereótipos que representam (mas, no caso desta produção, este fato soa bem mais benéfico que maléfico): Augustus Gloop é o que menos aparece e o que mais se dá mal em função de sua gula (o que não é uma falha de caráter, mas…); Violet Beauregarde é sabotada pela sua própria – e extrema – arrogância; Veruca Salt é castigada por ser terrivelmente mimada e egoísta; e Mike Teevee é viciado em televisão (ao ver uma situação impressionante, ele diz “Isso daria um ótimo seriado!“), sendo prejudicado por sua inconsequência.
Assim sendo, chegamos ao aspecto mais complexo e interessante de A Fantástica Fábrica de Chocolate: o irretocável Willy Wonka vivido por Gene Wilder (cuja carreira começou com o pé direito em Bonnie & Clyde e, depois disso, não poderia ter seguido um caminho melhor: Primavera para Hitler, Banzé no Oeste, O Jovem Frankenstein, A Dama de Vermelho, Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo, Mas Tinha Medo de Perguntar… preciso dizer mais?). Expondo um senso de humor sarcástico e irônico, o personagem é enérgico (vejam como ele desce as escadas, pausando para retornar alguns degraus ou sacudir brevemente as pernas) e sempre parece estar vivendo num mundo particular que não pode ser desvendado – e seu olhar cintilante evidencia isso ao sugerir que Wonka está constantemente sintonizado em outra frequência. No entanto, os dois fatores que mais atraem na performance de Wilder são sua imprevisibilidade (ele sempre parece estar prestes a fazer algo absurdo) e a leve crueldade existente em seus comentários e ações: quando acaricia a cabeça de Mike Teevee (num gesto supostamente meigo), ele logo arranca um fio de cabelo do menino; quando Augustus Gloop cai no rio de chocolate e é levado pela sucção, o que realmente leva Willy ao desespero é… o líquido ter sido “contaminado” por mãos humanas. E estes são apenas dois exemplos.
Outros detalhes que podem ser constatados na interpretação de Wilder correspondem ao temperamento volúvel que este conferia a Willy Wonka: em geral, o personagem é sereno (atentem-se ao divertidíssimo contraponto entre a calmaria de sua voz e os movimentos bruscos que executa enquanto apresenta a fábrica aos visitantes – estrelando o número musical “Pure Imagination“), mas torna-se assustador em suas explosões ocasionais – e perto do desfecho da película, vemos Wonka tendo um acesso de raiva impactante que resume o quão eficaz era Wilder ao “passear” entre variadas emoções. E mais: ainda que pareça sádico (e quase é), Willy também é dócil e gentil com quem realmente merece; o que se comprova na cena final do longa, na qual o personagem mostra-se genuinamente satisfeito com a vitória de Charlie e o abraça com um enorme (e contagiante) sorriso no rosto. Para completar, um mero detalhe que me agrada é perceber que Wonka sempre surge comendo uma de suas guloseimas, numa evidência de que seu interesse por doces não é puramente comercial – e encerrando, uma característica que Gene Wilder nunca deixou de ter era seu olhar que, de certa maneira, indicava melancolia e/ou tristeza; o que terminava por conferir dimensão e vulnerabilidade a seus papéis.
Já no que diz respeito à fábrica em si, vale dizer que o diretor de arte Harper Goff merece elogios pelo seu trabalho aqui: imaginado como um ambiente lúdico e repleto de arquiteturas inventivas, o lugar que dá título à obra é multicolorido e conta com apetrechos dos mais variados, indo de cogumelos cremosos até flores que, na verdade, são xícaras comestíveis, passando por pequenas árvores feitas de doces e pela já citada cachoeira de chocolate – e isso porque estou falando apenas sobre a primeira sala visitada pelos personagens, pois cada um dos pontos vistos em tela possui suas próprias (e marcantes) características visuais. E se a fotografia de Arthur Ibbetson é digna de nota por contrapor o tom cinzento da casa de Charlie com a paleta de cores fortes da fábrica Wonka, a magistral trilha sonora nunca sai da cabeça (e, neste caso, isso é ótimo), partindo dos números musicais sempre fascinantes e culminando no tema lindíssimo que permeia a maior parte da projeção.
Enriquecido pela excelente montagem de David Saxon, que mantém uma fluidez constante e jamais deixa a narrativa se tornar minimamente entediante (aliás, é admirável que a obra não tenha envelhecido no que diz respeito ao ritmo, que ainda hoje soa ágil e dinâmico), A Fantástica Fábrica de Chocolate também não é um filme perfeito, algo que pode ser constatado em algumas falhas técnicas que, mesmo para a época, eram sintomáticas (e por mais bela que seja, a fábrica que dá nome ao longa é artificial em alguns aspectos: é nítido que muitas daquelas “guloseimas” são materiais infláveis pintados e que aquele rio de chocolate – feito a partir de uma mistura de água com cacau e creme – é aguado demais). E se os Oompa-Loompas nunca me provocaram o medo que muitas pessoas dizem ter sentido por eles, a sequência em que vemos um macabro passeio de barco dentro de um túnel destoa bastante do resto do longa, revelando-se bizarra e exageradamente sombria dentro do conjunto da obra. Para finalizar, é preciso apontar que a própria narrativa apresenta alguns desvios – e toda a subtrama envolvendo o medo de Charlie diante da figura de Arthur Slugworth (ou Sr. Wilkinson), por exemplo, poderia ser facilmente descartada, esforçando-se para criar um antagonismo onde não era necessário.
Felizmente, estes pecados jamais tiram a graça desta que é, sem dúvida alguma, uma fabulosa e encantadora adaptação que, de quebra, ainda funciona maravilhosamente como obra cinematográfica individual. Encerrando-se com uma cena belíssima e poderosa que desperta sorrisos no público ilustrando o auge da bondade de Willy Wonka e da magia experimentada por Charlie, A Fantástica Fábrica de Chocolate pode até trazer alguns problemas, mas o talento de Mel Stuart e a genialidade de Gene Wilder tornam a produção tão encantadora que chamá-la de clássico não é nem um pouco exagerado.