As religiões de matrizes africanas são parte fundamental e indiscutível da construção do Brasil enquanto sociedade, se firmando, ao longo dos séculos, como prova da riqueza cultural, tradicional, étnica e artística que sempre foi a marca registrada de nosso país. E é um triste paradoxo, portanto, que estas mesmas religiões ainda hoje sejam vistas com preconceito, ignorância e ódio por uma parcela considerável de um Brasil que, mesmo rico em sua diversidade, segue contaminado pela visão eurocêntrica que provém de sua colonização católica, entregando-se, em boa parte, a um fundamentalismo cristão que ainda hoje impede o Estado de ser laico na prática e que contribui para que justamente estas raízes africanas tornem-se principal alvo de intolerância. Assim, é importante que haja um documentário como Cavalo não apenas para relembrar a influência destas religiões, mas também o quanto elas se manifestam através de uma Arte que, embora marginalizada, exige e merece um mínimo de compreensão.
Dirigido por Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, Cavalo gira em torno de sete jovens dançarinos que, influenciados pelo Candomblé, buscam compreender as raízes culturais que os levam à dança que desejam realizar, celebrando, através de seus movimentos corporais, os ancestrais rejeitados pelos colonizadores que ainda hoje mandam no Brasil. A partir daí, o longa deixa de se apresentar somente como um documentário e assume um caráter “híbrido”, dividindo-se entre: 1) os depoimentos dos jovens e de seus familiares; e 2) sequências inteiramente dedicadas às performances destes mesmos jovens, mostrando longos números de dança após estabelecer com cuidado as motivações (culturais/religiosas/espirituais) por trás de cada um destes.
O mais interessante, contudo, é perceber como uma abordagem acaba complementando a outra: se vistas isoladas, as performances impressionam pelo comprometimento físico dos artistas que as realizam; quando vistas depois de longos depoimentos nos quais estes mesmos artistas falam sobre sua Arte, porém, elas obviamente ganham um significado ainda maior (da mesma forma, os próprios depoimentos tornam-se mais “completos” quando seguidos de performances que põem suas palavras em prática). Além disso, a simples decisão de abrir o filme com uma cena que retrata a criação do Homem pelos orixás (“Olorum pediu a Oxalá que criasse o Homem para habitar a Terra…”, diz uma citação logo no início da projeção) revela-se fundamental, pois é através desta encenação que Barbosa e Bagetti estabelecem, de forma rápida e sucinta, a base dos monólogos que virão nos 80 minutos posteriores.
Não que Cavalo se preocupe necessariamente em explicar a religião em si (o objetivo do filme, embora antropológico, não é este), preferindo, em vez disso, mostrar como esta se transforma em Arte ao influenciar as danças realizadas pelos personagens – e, ao entendermos o papel que estas raízes africanas desempenham nos jovens dançarinos, passamos a compreender também a força de suas danças. Neste sentido, as sequências que se dedicam apenas a filmar as performances feitas pelos artistas fazem jus ao título do filme, já que, alternando entre coreografias filmadas em estúdio e outras sob a chuva no meio da rua, elas se destacam justamente por exibirem a potência dos dançarinos – uma potência digna de… um cavalo, no auge de seu vigor físico.
Mesmo ocasionalmente pecando em seu ritmo, que às vezes se apresenta lento demais se comparado à potência sugerida pelo animal-título e pelas movimentações corporais dos dançarinos, Cavalo ainda assim é uma obra não apenas eficaz em sua construção, mas também fundamental em um país que, mesmo após séculos de incontestável influência africana, insiste em negar suas ancestralidades em prol de um moralismo burro, eurocêntrico e incapaz de levar a sério uma Arte que sequer tenta compreender.
Esta crítica foi escrita como parte da cobertura do Festival Ecrã 2020.