Dora, a Aventureira é um desenho difícil de se transformar em filme live-action – afinal, a maioria dos episódios girava em torno de aventuras cujo caráter fabulesco era inegável e os melhores amigos da personagem-título incluíam um macaquinho que usava botas e (o mais surpreendente) um mapa e uma mochila falantes. Retratar estes elementos numa versão em carne-e-osso sem cair no ridículo parece impossível. Assim, confesso que fiquei curioso quando me deparei, no início da projeção de Dora e a Cidade Perdida, com um aviso sarcástico que dizia “Tudo que você está prestes a ver é verdade. Exceto que raposas não roubam. Isto é um estereótipo ofensivo.“. Pois a verdade é que esta adaptação live-action aos poucos revela um senso de auto-paródia que faz toda a diferença para o resultado final, demonstrando entender perfeitamente os riscos por trás de um projeto como este.
Escrito por Nicholas Stoller e Matthew Robinson, o roteiro começa mostrando as brincadeiras da pequena Dora na floresta do Peru e a despedida de seu primo Diego, que agora terá que se mudar para Los Angeles e estudar num colégio de lá. A partir daí, um salto de 10 anos nos traz ao presente e Dora, que acaba de virar adolescente, é mandada pelos pais a Los Angeles para fazer o ensino médio na mesma escola de Diego – e o fato de pertencer a outra cultura eventualmente transforma a menina em um alvo fácil de piadinhas humilhantes e comentários maldosos (muitos deles feitos pela mimada Sammy). Mas aí, uma virada drástica na história acaba colocando Dora, Diego, Sammy e um garoto chamado Randy numa aventura em busca da cidade perdida de Parapata.
Experiente com adaptações de séries infantis famosas desde que realizou Os Muppets 1 e 2, o diretor James Bobin parece ter voltado à boa forma depois do horroroso Alice Através do Espelho, trazendo um ar de deboche puro a uma história que, caso se levasse a sério, teria tudo para cair nas armadilhas habituais do gênero ao qual pertence. Aliás, a primeira meia hora de Dora é também a sua melhor, inserindo a dinâmica do “estrangeiro tendo que se adaptar ao solo norte-americano” de obras como Crocodilo Dundee dentro do contexto das comédias high school – e, assim, boa parte das piadas vem do fato não de Dora ser anti-social, mas de ter um estilo de vida diferente (e bem mais educado, por sinal) que o dos outros adolescentes, chegando ao ponto de parabenizar todas as crianças na saída do colégio como se estas devessem ser congratuladas por terem completado um dia de aula, por exemplo. Além disso, Bobin brinca com a postura heroica que Dora deveria exibir nos momentos mais movimentados da trama, tornando particularmente hilária a cambalhota radical que ela faz na asa de um avião e o jeito com que guarda seu ioiô na mochila após usá-lo para atordoar um vilão.
Buscando resgatar o dinamismo e as cores da série original da Nickelodeon logo no início da projeção, que recria a abertura do desenho e sua música-tema, Dora investe pesadamente em figurinos e cenários que, justamente por serem tão intensos e multicoloridos, sugerem um caráter lúdico e inocente que remete ao universo da animação – e até mesmo o fato de Botas e Raposo surgirem em composições digitais artificiais acaba desempenhando um papel importante, aproximando-os da aparência cartunesca que conhecemos em suas versões originais (só lamento a tentativa de fazer a fisionomia Botas parecer a de um macaco real, já que isto reduz um pouco a fantasia em sua concepção visual). Como se não bastasse, o filme culmina seus esforços numa sequência divertidíssima que, trazendo os personagens sob efeito de psicotrópicos (não, você não leu errado), retoma os traços e a natureza bidimensional da série animada – e é uma pena, porém, que a cena dure tão pouco.
Infelizmente, é também depois desta cena que Dora começa a perder força, abandonando gradualmente o senso de irreverência que vinha mantendo desde o início e tornando-se cada vez mais genérico à medida que se aproxima do terceiro ato (não à toa, os melhores momentos do filme pertencem à sua primeira metade). Até o bom humor vai deixando de lado a espontaneidade e dando espaço a piadinhas tolas e previsíveis, como aquela que traz certo personagem imitando sons de peidos com os pés em um solo arenoso – e a mesma obviedade se aplica às reviravoltas que começam a surgir do meio para o fim, apresentando revelações que deveriam soar bombásticas, mas que já eram esperadas desde o início. Para piorar, o ato final se alonga muito mais do que precisava: quando estamos cada vez mais perto do clímax, algo aparece para deixá-lo ainda mais distante, o que faz a narrativa perder o ritmo justo quando está prestes a terminar.
Em compensação, nem o pior tropeço do filme é capaz de ofuscar o carisma de Isabela Moner: retratando a protagonista como uma adolescente repleta de energia e vivacidade, a jovem atriz atravessa a projeção inteira com um sorriso que, junto ao seu olhar expressivo, indica fascínio e entusiasmo diante de tudo que a cerca – o que se contrapõe à rigidez com que encara um beijo entre dois personagens no terceiro ato, como se estivesse presenciando uma cena natural demais para ser vista com euforia. Já Madeleine Madden encarna Sammy como uma garota mimada, mas que diverte graças ao exagero hilário em seus maneirismos, ao passo que Jeff Wahlberg… bem, faz o que pode com Diego mesmo que sua presença não seja das mais fortes. Por outro lado, se Nicholas Coombe fracassa em quase todas as suas tentativas de humor, Eugenio Derbez fracassa em literalmente todas as suas tentativas de humor, o que é uma pena.
Trazendo Eva Longoria e Michael Peña em participações rápidas, mas eficientes, Dora e a Cidade Perdida é uma aventura que, mesmo perdendo-se pontualmente, diverte ao brincar com os absurdos de sua premissa.
Observação: com a desculpa de “atender à demanda infantil”, a Paramount Brasil lançou o filme apenas em sessões dubladas, tirando do espectador a possibilidade de vê-lo no cinema em som original e limitando as opções do público a uma única. Inclusive, a cabine na qual assisti ao longa foi dublada. No entanto, por uma questão de princípios, decidi revê-lo no idioma original antes de escrever esta crítica. E… uau. Virou outro filme – infinitamente melhor, diga-se de passagem. Toda a sensação de auto-deboche que constatei na obra (e que elogiei anteriormente) desapareceu na versão dublada. Na primeira assistida, pensei se tratar de uma aventurinha boba e que caía em todas as armadilhas que plantava para si própria; na segunda, porém, me dei conta de que o diretor James Bobin estava justamente brincando com estas armadilhas. Se eu tivesse escrito a crítica tomando como base apenas o que vi inicialmente, teria sido bem mais desfavorável com o filme. Inacreditável como uma dublagem (ruim) pode mudar o teor inteiro de uma produção, não?