Para começar a entender mais ou menos como é Ilha dos Cachorros, basta imaginar um cruzamento entre dois mestres do Cinema japonês: Akira Kurosawa (Os Sete Samurais, Rashômon, Yojimbo) e Hayao Miyazaki (Meu Amigo Totoro, Princesa Mononoke, A Viagem de Chihiro). Agora, coloque estes dois estilos sob o filtro particular de Wes Anderson. Ele mesmo assumiu em entrevistas que tanto Kurosawa quanto Miyazaki serviram de inspiração para Ilha dos Cachorros, mas é claro que o filme jamais seria o que é sem o toque particular do cineasta, cuja ótima carreira segue encabeçada por Moonrise Kingdom e O Fantástico Sr. Raposo.
Escrito, produzido e dirigido por Anderson (que, não custa lembrar, realizou o bem-sucedido O Grande Hotel Budapeste há quatro anos), Ilha dos Cachorros se passa num Japão distópico onde os cães foram infectados por um vírus aparentemente incurável. Temendo os danos que doença poderia causar à humanidade, o prefeito Kobayashi resolve exilar todos os cachorros numa ilha repleta de lixo, onde todos eles permanecem para sempre. As coisas começam a mudar, no entanto, quando o adolescente Atari, ninguém menos que o sobrinho do prefeito Kobaysahi, decide voar até a ilha a fim de reencontrar seu cão de guarda – e após se apegar aos cachorros banidos, o garoto percebe que eles precisam de ajuda para conquistar aquilo que merecem: voltar à cidade de Megasaki.
Não é necessário muito esforço para perceber que, em Ilha dos Cachorros, a trama serve para remeter às ações nacionalistas que vários governos construíram através do ódio e da segregação; o que é inesperado, já que subtextos políticos não costumam aparecer com frequência na filmografia de Wes Anderson. Embora não seja particularmente sutil ao discorrer sobre os temas que aborda, o roteiro é hábil ao estabelecer as similaridades entre os cachorros e os povos que vêm sendo continuamente discriminados ao longo da História, não sendo uma surpresa, portanto, que a maneira como o prefeito Kobayashi é mostrado acabe lembrando algumas imagens conhecidas de Adolf Hitler – e é uma pena que, mesmo investindo num universo lúdico e fantasioso, o filme conte com vilões que têm tudo a ver com certos presidentes xenófobos e racistas da atualidade. Aliás, Ilha dos Cachorros talvez formasse uma sessão dupla curiosa com o recente (e divertidíssimo) A Morte de Stalin, já que ambos falam sobre a facilidade com que o totalitarismo pode surgir em determinados governos.
Certamente concebida como uma obra voltada para um público mais velho (não sei se crianças serão capazes de curtir uma animação como esta), Ilha dos Cachorros é protagonizado por heróis que fogem do maniqueísmo: se por um lado os vilões são nefastos apesar de realistas, os cachorros apresentam tons de cinza que conferem densidade às suas personalidades – e confesso que, no início, pensei que Chief (o vira-lata dublado por Bryan Cranston) seria um dos antagonistas, o que resultou na surpresa de descobrir sua jornada em busca de redenção. Cranston, por sinal, finalmente volta à boa forma depois do sucesso de Breaking Bad, transformando o protagonista em uma criatura cujo pessimismo e mau humor soam como resultados de um trauma passado, mas que aos poucos vai reencontrando seu caminho. (E aqui fica o adendo: esta é uma animação que, como O Fantástico Sr. Raposo, merece ser vista em sua versão original, pois o elenco conta com nomes como Edward Norton, Scarlett Johansson, Bill Murray, Jeff Goldblum, Greta Gerwig, Frances McDormand, Tilda Swinton, Ken Watanabe e outros.)
O que não quer dizer, por outro lado, que Ilha dos Cachorros não saiba se divertir: investindo num tom de voz levemente constante e monocórdio, o filme rende algumas risadas quando os personagens dizem algo aparentemente grave sem alterar a estabilidade em suas falas – e a simetria característica de Wes Anderson também serve como instrumento de humor, já que o simples fato de um travelling “ir e voltar” em certo instante acaba surtindo um efeito cômico eficiente. Além disso, quando Chief começa a relatar uma situação para seus companheiros, o único ser humano presente na situação – no caso, o jovem Akira – também presta atenção no que o cachorro está falando, como se entendesse o que ele está dizendo (e isto, por si só, é engraçado). E há, claro, algumas vantagens naturais da animação stop-motion, que permite que o realizador se entregue à caricatura com uma facilidade que o live-action nem sempre é capaz de oferecer; o que pode ser observado, por exemplo, quando vários personagens começam a brigar e, nisso, se transformam numa imensa nuvem de fumaça.
Aliás, Ilha dos Cachorros é mais um longa que entra para a lista dos espetáculos visuais proporcionados por Wes Anderson: agregando uma série de elementos distópicos sem deixar de lado suas tradições milenares da cultura japonesa, Megasaki é uma cidade que chama a atenção ainda no establishing shot que a introduz, apresentando edifícios cujas cores avermelhadas e/ou amareladas se contrastam ao roxo do céu – e o mais interessante, no entanto, é constatar como os tons saturados e vibrantes desta cidade se opõem à paleta cinzenta e poluída que surge na ilha que dá título ao filme. Para completar, a montagem de Ralph Foster e Edward Bursch complementa bem a inventividade particular de Anderson ao conferir dinamismo visual às transições de uma cena para a outra (existe um momento onde um cachorro é mostrado andando ao longo de várias horas e, na hora de ilustrar a passagem do tempo, a câmera apenas se mantém presa ao animal enquanto as locações exibidas no fundo vão mudando).
Claro que, para que os designs dos personagens e dos cenários funcionem, a equipe de animadores também precisa fazer um trabalho competente – e nisso o filme é tão eficaz quanto O Fantástico Sr. Raposo: sabendo aproveitar os benefícios que o stop-motion oferece por natureza (quando escrevi sobre Shaun, o Carneiro e Kubo e as Cordas Mágicas, falei sobre como as texturas das peles dos personagens e dos objetos que compunham a cena soavam convincentes e quase tangíveis), Ilha dos Cachorros não faz questão de emular os movimentos que pessoas e animais em carne e osso costumam executar na vida real, mas o charme da animação provém justamente do comprometimento que ela tem com o cartunesco. De todo modo, o fato é que os detalhes contidos nos personagens tendem a torná-los mais palpáveis, desde a leve abanada na orelha de um dos cachorros até o jeito como o vento cuidadosamente arrasta um corpo preso a um paraquedas.
Colocando os cães para falarem em inglês enquanto a maioria dos seres humanos se comunica em japonês (o que talvez leve algumas pessoas a acusarem o filme de apropriação cultural), Ilha dos Cachorros ainda homenageia outros gêneros cinematográficos: em certo instante, quando dois grupos de animais se encaram em tom de ameaça enquanto uma bola de feno cruza a tela, isto logo remete aos faroestes – que, por sua vez, chegaram a interagir com os filmes de samurai. E estes também são relembrados aqui, já que a aventura toda se passa no Japão e a trilha de Alexandre Desplat (colaborador habitual de Wes Anderson) faz um excelente trabalho ao fortalecer o ritmo da aventura com batidas tipicamente orientais.
E percebam que, em dois momentos específicos de Ilha dos Cachorros, o filme recorre aos temas musicais de O Anjo Embriagado e de Os Sete Samurais. Dois filmes que, inclusive, foram dirigidos por Akira Kurosawa. E podem ter certeza de que isto não foi por acaso.