Em certo momento de Mulher-Maravilha, a protagonista e seu parceiro vivido por Chris Pine entram num beco e são emboscados por sujeitos armados. Quando um dos adversários atira em direção ao homem, a personagem-título imediatamente usa seu bracelete para fazer com que a bala ricocheteie e não acerte o companheiro. Trata-se, é claro, de uma inversão dos papéis que pertenceram a Christopher Reeve e Margot Kidder no Superman que Richard Donner dirigiu em 1978, quase como se o roteirista Allan Heinberg e a diretora Patty Jenkins observassem a cultura dos longas-metragens adaptados de quadrinhos e amigavelmente dissessem: “nós adoramos filmes de super-heróis e agradecemos à existência destes, mas chegou a hora das mulheres ganharem um espaço no meio dessa turma toda”.
Assim, depois de anos com uma dominação majoritariamente masculina, é admirável que o subgênero enfim tenha conseguido produzir uma obra hábil ao desenvolver a questão da representatividade feminina, já que os poucos filmes de super-heroínas realizados até aqui haviam resultado em desastres (Supergirl; Tank Girl; Barb Wire; Mulher-Gato; Elektra). E quando a protagonista de Mulher-Maravilha desprende seus cabelos, sai de uma trincheira e parte em direção ao campo de batalha com uma imponência invejável, a cena desperta emoções que vão além da pura empolgação e torna-se particularmente tocante, pois a construção de Diana Prince como uma personagem forte que a levou até aquele momento havia sido conduzida com uma sinceridade que não se vê todo dia. Não se trata de um projeto que reconhece a relevância de sua própria natureza e acredita que isso é o que basta para receber aplausos, mas um que se esforça para merecê-los e que é bem-sucedido no processo.
Concebido como um flashback de duas horas, o longa se passa na época da Primeira Guerra Mundial e revela os anos que deram origem à Mulher-Maravilha que vimos em Batman vs Superman, dando início à narrativa estabelecendo que as amazonas habitam a ilha de Themyscira e lutam para se defender de Ares, o deus da guerra. Depois que o soldado Steve Trevor acaba caindo na terra fantástica em que as poderosas vivem, a princesa Diana se envolve com o indivíduo e decide acompanhá-lo ao mundo exterior a fim de enfrentar Ares e acabar com toda a injustiça presente no mundo, indo parar na Londres de 1914. Desta forma, a amazona não só conhece os homens como também se depara com uma sociedade que tende a enxergar a mulher como uma criatura frágil e que costuma ser valorizada mais pelos seus padrões estéticos do que por qualquer outra coisa.
O primeiro elemento que chama a atenção é o tom encontrado por Patty Jenkins, que se afasta da sobriedade artificial das últimas produções da Warner/DC sem se transformar numa colcha de retalhos como, por exemplo, Esquadrão Suicida. Recuperando o otimismo e a leveza que são frequentemente esquecidas pelas adaptações de quadrinhos, a diretora cria uma narrativa inocente e divertida sem diluir sua força ou se sentir na obrigação de inserir piadas o tempo todo (um erro que os títulos da Marvel cometem constantemente). Ao mesmo tempo, a cineasta se sai bem ao apresentar convenções clássicas dos filmes de super-heróis, exaltando a magnitude de Diana através de planos grandiosos e instantes onde a câmera lenta dá origem a imagens belíssimas. Como complemento, Jenkins é bem-sucedida na concepção das sequências de ação, que contam com energia e dinamismo sem abusar de cortes ininterruptos ou de movimentos de câmera excessivos.
No entanto, o que realmente torna Mulher-Maravilha memorável é a própria personagem-título: longe de ser a guerreira sisuda e invulnerável que se destacou no terceiro ato de Batman vs Superman, a Diana desta produção exibe uma visão de mundo pueril, ingênua e maniqueísta, mas que contagia justamente por manter-se esperançosa em vez de render-se ao pessimismo. Aliás, quando comparada às outras figuras que apareceram no universo estendido que a Warner/DC criou a partir de O Homem de Aço, a amazona se prova como uma heroína verdadeira: enquanto os outros superseres alternavam entre psicopatas sádicos e indivíduos que tentavam defender a Terra por sei-lá-quais-motivos, Diana resolve salvar o mundo por questões puramente altruístas – e se Superman não parecia se importar com as milhares de mortes provocadas em Metrópolis, a Mulher-Maravilha não consegue suportar a ideia de ver um único inocente sofrer nas mãos dos malfeitores. Para completar, o desempenho de Gal Gadot é uma grata surpresa, já que a atriz, mesmo limitada, se mostra dona de um carisma conquistador que ajuda a injetar na personagem a dose certa de sensibilidade, charme e singeleza.
A mesma eficácia se encontra na química entre Diana e Steve Trevor, que se atraem graças às personalidades magnéticas de ambos, exibem um companheirismo contagiante na forma como interagem e revelam detalhes cada vez mais inesperados a respeito de suas respectivas naturezas. Trevor, inclusive, é vivido por Chris Pine como um sujeito carismático e que parece aprender novos valores com a companhia de Diana, sendo interessante notar como ele se mostra menos frágil do que a maioria das mulheres que acompanham os super-heróis em produções desse tipo (o que deixa claro que o filme não precisa diminuir os homens a fim de privilegiar a presença feminina). Já os vilões, interpretados por Danny Huston e Elena Anaya, surgem como as típicas criaturas malvadas e divertidas que costumam ser encontradas em obras como Indiana Jones – o que não significa, porém, que o roteiro não peque ao exagerar em caracterizações camp, falhando especialmente ao trazer um momento onde a dupla gargalha após praticar uma travessura (sim, esse termo é adequado).
Quanto aos aspectos técnicos, Mulher-Maravilha traz uma série de êxitos – e se a montagem de Martin Walsh é bem-sucedida ao facilitar a compreensão das cenas de ação e retratar com agilidade os anos que a protagonista passou treinando ao lado das demais guerreiras, o design de produção elaborado por Aline Bonetto é eficiente na forma com que imagina a terra fantástica das amazonas e recria o cenário londrino da década de 1910, destacando-se também ao ilustrar os danos que as batalhas geram em vilarejos que, após serem convertidos em verdadeiras zonas de guerra, têm suas arquiteturas destroçadas. Por fim, o diretor de fotografia Matthew Jensen toma uma decisão inteligente ao contrapor as paisagens idílicas de Themyscira (um lugar onde o verde, o amarelo e o azul são sempre enfatizados) à atmosfera sufocante que domina Londres e os campos que marcam os conflitos da Primeira Guerra (e nem por isso a fotografia se torna excessivamente cinzenta, estabelecendo, inclusive, um contraste atraente entre o azul marinho e as cores vermelhas e douradas que Diana traz em sua armadura).
Fortalecido pela ótima trilha sonora de Rupert Gregson-Williams (que não só realiza composições poderosas como também reconhece que o tema musical idealizado por Hans Zimmer e Junkie XL em Batman vs Superman já se tornou icônico e acerta ao criar variações deste), Mulher-Maravilha tropeça somente em seu terceiro ato, que, inchado e desnecessariamente longo, investe num festival de efeitos digitais irregulares e estende a duração do filme além do ideal. Além disso, algumas passagens (como a que traz os heróis acampando) poderiam ser facilmente reduzidas ou mesmo excluídas sem problema algum, já que servem basicamente para prolongar a projeção até fazê-la alcançar consideráveis 141 minutos (o que dizer, por exemplo, da sequência que envolve uma festa e que traz a protagonista caminhando no meio de civis com uma espada “escondida” nas costas?).
Nada, contudo, que comprometa este que não só é o melhor longa que a Warner/DC produziu desde O Cavaleiro das Trevas, como também é um marco inegável para as adaptações de quadrinhos para o Cinema. Apostando num senso de humor pontual que funciona muitíssimo bem sem jamais permitir que o projeto descambe para o ridículo ou se torne inconsequente demais, Mulher-Maravilha é uma obra representativa sem ser cínica, inocente sem ser estúpida e inspiradora sem ser irresponsável nos valores que pretende transmitir, transformando-se numa adição importante para a História dos filmes de super-heróis.
Ou, neste caso, super-heroínas. E como é bom saber que elas finalmente parecem ter ganhado o devido destaque.