É desanimador que filmes como Passageiros ainda sejam feitos: por um lado, o novo longa do diretor Morten Tyldum (que comandou O Jogo da Imitação) é um romance cafona e uma ficção científica terrivelmente preguiçosa (o que não é de se espantar, considerando que o roteiro foi assinado pelo mesmo Jon Spaiths de Prometheus); por outro, no que diz respeito aos seus valores morais, esta obra também é uma das coisas mais nojentas e doentias que me recordo de ter visto dentro de uma sala de cinema em um bom tempo. E o que mais me surpreende é que esta frase anterior certamente deve ter soado como um sensacionalismo daqueles que mais me incomodam.
Pois acreditem: Passageiros faz frases aparentemente hiperbólicas tornarem-se bastante apropriadas.
(Aqui cabe uma observação: tomando uma decisão covarde no que me parece ser um esforço para minimizar maiores polêmicas que poderiam ser geradas ao redor da produção, os trailers e materiais responsáveis pela divulgação ocultaram uma informação crucial que faz parte do conceito geral da história. É como se a campanha de marketing de Homem-Aranha transformasse em spoiler o fato do herói ganhar superpoderes após ser picado por uma aranha radioativa.)
Ambientado num futuro em que a Terra já está bem mais avançada na exploração do universo, o longa nos apresenta à nave Avalon, que está transportando 5 mil passageiros hibernantes para o planeta-colônia Homestead II. No meio da viagem, porém, uma falha leva o mecânico Jim Preston a despertar da jornada; que ainda vai durar 90 anos, o que significa que o indivíduo foi condenado à morte ao acordar. Até aí, tudo bem – o problema é que, quando chega o momento em que Jim não consegue mais suportar a solidão, ele admira o semblante da jornalista Aurora Lane, uma passageira que ainda está hibernando e, consequentemente, sobreviverá até chegar ao destino. Contudo, Preston atinge o ápice do egoísmo e decide acordar a jovem para que ela possa morrer junto ao herói.
Sim, herói. Ao menos é assim que a produção encara a ação absolutamente execrável de Jim, que se torna aficionado por Aurora, enxerga nela uma solução para seus próprios problemas pessoais e acessa todos os dados a seu respeito (e a privacidade que se exploda); inclusive, chega a ser incômodo ver que o filme realmente não se dá conta da natureza doentia que envolve a obsessão do protagonista pela mulher, tratando essa insanidade como se fosse uma “paixonite fofinha de uma vítima da solidão”. O pior é que, embora Jim sinta um pesar pelo que faz com Aurora, isto não é o suficiente para que a obra insista em tentar fazer com que seus erros soem compreensíveis, como se o fato dele se sentir culpado pudesse absolvê-lo de quaisquer julgamentos – não é à toa que, depois que a garota descobre que foi uma vítima de Preston, ocorre um diálogo onde certo personagem diz que “ao se afogar, você sente o desejo de ver outra pessoa afogando junto“.
E se a segunda metade da projeção traz um longo período em que Aurora passa a enojar Jim (com razão), a ação desenfreada que acontece no terceiro ato conta com uma alteração onde a mulher implora para que seu “amado” retorne para ela, como se fosse incapaz de viver sem a companhia do sujeito (aliás, nem preciso explicar a metáfora óbvia – e erradíssima – entre Aurora e Bela Adormecida, certo?). O que nos traz ao grand finale: quando enfim consegue encontrar um meio de voltar a hibernar, Jim percebe que apenas um integrante do casal poderá repousar na câmara, cedendo a mesma à mulher para deixá-la sobreviver ao resto da viagem. Mas mesmo assim, Aurora opta por deixar sua salvação de lado e passar as décadas que ainda lhe sobram ao lado do canalha que ela tanto venera – e claro que o longa trata isso como se fosse a coisa mais linda e encantadora do mundo. Neste ponto, é difícil acreditar que não houve uma pessoa sequer que pudesse questionar os envolvidos no projeto dizendo “Hey, vocês não acham que o nosso machismo está escancarado demais?”.
De qualquer forma, não é só o fato de ser uma ode ao assédio romantizado que compromete o resultado da película (afinal, obras como O Nascimento de uma Nação, O Triunfo da Vontade e até A Paixão de Cristo comprovam que filmes podem ser competentes mesmo que sejam moralmente reprováveis). Pecados éticos à parte, a realidade é que Passageiros conta com um roteiro dos mais descuidados, incluindo diálogos horrendos que vão de frases tolas como “Às vezes, slogans são de verdade” até um trocadilho infame envolvendo espaço. Ainda assim, o que mais impressiona são os furos e as explicações toscas para problemas consideráveis: se o primeiro ato consegue estabelecer relativamente bem as regras que ditarão (ou ditariam) o universo em que a narrativa se passa e traz algumas ideias que poderiam obter resultados eficientes se fossem bem desenvolvidas, tudo isso é deixado de lado para dar ênfase ao romance entre os personagens – e notem que o roteiro chega a se desviar da lógica proposta por ele mesmo apenas para se concentrar na paixão entre Jim e Aurora, como no instante em que Avalon convida os passageiros para contemplarem uma estrela quando eles estavam hibernando.
Para piorar, o terceiro ato revela-se uma bagunça desastrosa que parece existir apenas para torrar de vez os US$ 110 milhões investidos na produção, apresentando uma série de conveniências, situações absurdas e resoluções ainda menos convincentes – há, inclusive, a participação de um ator famoso que serve única e exclusivamente para ajudar os personagens a enfrentarem certo desafio. (Diga-se de passagem chega a ser até meio deprimente ver outro rosto conhecido fazendo uma figuração na cena final do filme.) E se Chris Pratt decepciona ao retratar a angústia crescente e o sentimento de solidão experimentados pelo protagonista através de expressões exageradas que indicam uma forte limitação como ator dramático (será que ele só funciona em papeis cômicos?), a talentosa Jennifer Lawrence continua adicionando escolhas erradas em carreira – o que não quer dizer, por outro lado, que ela não se destaque especialmente nos instantes em que deve expressar o nojo e o pavor que passa a sentir por Jim, o maníaco.
Por sua vez, o diretor Morten Tyldum tem um desempenho mais eficaz do que em O Jogo da Imitação: se lá ele entregava um trabalho que parecia mais apropriado à TV do que ao Cinema, aqui o cineasta consegue ao menos fazer jus aos valores técnicos elevados do projeto através de sequências visualmente interessantes, como a que traz Jim saindo da nave pela primeira vez e aquela que envolve uma piscina sob efeito antigravitacional. Fora isso, porém, Tyldum raramente volta a chamar a atenção e passa boa parte do tempo buscando explorar o corpo de Jennifer Lawrence de forma apelativa. De todo modo, a bela fotografia de Rodrigo Prieto é bem-sucedida ao usar a cor branca para ilustrar a limpeza e o charme do interior de Avalon ao passo que o ótimo design de produção elaborado por Guy Hendrix Dyas revela uma criatividade atraente nas telas, computadores e máquinas que existem dentro da nave e concebe a mesma como um item curiosamente rebuscado.
Em contrapartida, o competente compositor Thomas Newman (cuja carreira inclui Um Sonho de Liberdade, Beleza Americana, Estrada para Perdição, Procurando Nemo e Wall-E) desaponta ao não exibir um traço de originalidade em nenhum instante, limitando-se a recauchutar o que já havia feito em trilhas sonoras anteriores. E embora conte com valores de produção admiráveis, Passageiros é uma ficção científica pedestre que desperdiça ótimas ideias a fim de privilegiar uma história de amor clichê. E assustadora.