Numa ironia do destino, duas frequentes apostas para os grandes desastres de 2011 acabaram figurando nas listas de melhores filmes daquele ano: X-Men: Primeira Classe e Planeta dos Macacos: A Origem. Possivelmente por um trauma causado pela péssima reimaginação, era praticamente impossível acreditar que aquele reboot/prequel traria o brilho de volta à franquia iniciada por um dos maiores clássicos da ficção científica cinematográfica. No final das contas, foi uma gratíssima surpresa concebida através de uma admirável cautela e que demonstrava audácia por sacrificar uma considerável parcela de seu potencial narrativo para privilegiar a consistência enquanto deixava a promessa de que a densidade temática que caracterizou a pentalogia original (1968-1973) retornaria definitiva e inquestionavelmente no futuro desta nova cinessérie. Por isso, é um alívio constatar que, três anos depois, a promessa foi cumprida de maneira irretocável por Planeta dos Macacos: O Confronto, que continua o ótimo filme de 2011 e o supera sem dificuldades por se revelar um reflexo social relevante para um mundo tão conturbado quanto o que vivemos hoje.
Escrito pelos mesmos Rick Jaffa e Amanda Silver que se responsabilizaram pelo roteiro do filme passado com a adição de Mark Bomback, o novo Planeta dos Macacos se passa cerca de dez anos após A Origem, quando uma poderosa epidemia gerada a partir da criação do composto químico que conferiu inteligência aos primatas já erradicou boa parte da população mundial e desestabilizou as ações governamentais. Neste cenário apocalíptico, os humanos sobrevivem em resistências separadas caracterizadas como localidades devastadas, uma delas abaixo da ponte Golden Gate. Paralelamente, os símios já formam uma pequena sociedade nas florestas próximas a São Francisco e são liderados por uma versão mais velha, madura e imponente do Caesar que promoveu a revolução primata ilustrada no filme anterior. Depois que um pequeno grupo de sobreviventes convence o líder dos macacos que eles precisam ocasionar o funcionamento de uma usina hidrelétrica localizada dentro do território dos primatas para que a energia seja levada à resistência, o bonobo Koba se revolta graças ao rancor que guarda pelos seres que o maltrataram no passado e fará o possível para se vingar da raça humana mesmo que isso vá contra os pensamentos de Caesar.
Se passando num momento onde o mundo deve ser caracterizado como um lugar opressor e indesejável, O Confronto é infinitamente mais sombrio e dramático que A Origem, e se a direção do desconhecido Rupert Wyatt representava ocasionalmente um dos pontos negativos do capítulo antecessor, a vinda de Matt Reeves (de Cloverfield – Monstro e da refilmagem Deixe-me Entrar) acaba ocasionando num dos grandes méritos desta continuação por ilustrar este tom soturno e ameaçador com planos fechados raramente vistos em produções com um orçamento tão avantajado, algo que também influencia a proporção de tela quando o diretor opta por adotar uma razão de aspecto menor (creio que de 1.56:1) que o habitual 1.85:1. Da mesma forma, é possível constatar com Reeves valoriza a concepção de planos mais claustrofóbicos que os mais facilmente imagináveis para uma produção cujo custo foi registrado por US$ 170 milhões ao adotar mais planos perfis, médios, americanos ou closes em vez de inteiros ou conjuntivos, e mesmo quando a grandiosidade é atiçada na segunda metade do filme, a impressão que permanece é de que, se os principais realizadores das maiores ações apresentadas não fossem macacos concebidos através de captura de movimentos humanos, a produção seria um filme de ação que não é encarado como um blockbuster; e se você está pensando que essa escala menor é um defeito do filme, peço que releia o início do parágrafo e preste atenção às próximas linhas: por aplicar no longa uma aparência mais claustrofóbica, o diretor enriquece artisticamente esta obra por potencializar seu tom opressor fundamental para a narrativa neste caso.
Igualmente enaltecedora é a direção de arte, que concede um elevado grau de melancolia ao que se vê em tela e, assim, retrata a tristeza e desagrado que caracterizam aquele universo concebido como um lugar imprevisível e sem esperanças. As tonalidades azuladas e escurecidas se encarregam de representar o cenário apocalíptico de O Confronto como frio, desgostoso e indesejável, enquanto as cores quentes realçam a selvageria e a brutalidade que define as desfeitas protagonizadas por seres cegos pela irracionalidade. Da mesma forma, a fotografia soturna e austera de Michael Seresin é igualmente adequada por impor um clima de consternação ao que ocorre, enquanto o design de produção elaborado por James Chinlund merece todos os aplausos possíveis por conceber cenários fabulosos e inventivos, mas que nem por isso deixam de se ancorar numa realidade que faz com que aqueles ambientes se tornem verossímeis; e ao mesmo tempo em que as localidades povoadas por humanos são claramente influenciadas pelo clássico retrato do Apocalipse Zumbi visto, por exemplo, em The Walking Dead e The Last of Us, a fortaleza/moradia dos símios deslumbra e impressiona, mas ainda assim conseguimos acreditar que primatas com uma capacidade cognitiva acentuada e habilidades artesanais acima da média poderiam ter criado tal arquitetura. Como complemento, os próprios macacos ganham visuais criativos e que os definem de forma satisfatória, desde a austeridade de Caesar até a aparência ameaçadora de Koba.
Mas em termos visuais, não há absolutamente nada que chame tanto a atenção quanto os próprios primatas elaborados a partir de um exímio trabalho de captura de movimentos – e, se O Confronto eventualmente ganhar o Oscar de Efeitos Visuais ao qual foi indicado, será merecidíssimo. Os momentos em que uma inevitável queda do queixo ocorre são frequentes, e por mais que excepcionais efeitos visuais não sejam mais que uma obrigação para um filme de grande orçamento lançado em 2014, acredito que estes devam ser celebrados quando atingem tal estado de excelência. Além dos atores (sim, apesar das múltiplas camadas de computação gráfica por cima de suas faces, ainda são intérpretes que merecem a valorização) serem brilhantes ao conferir realismo e naturalidade aos movimentos corporais exercidos pelos símios, a própria textura dos personagens é igualmente convincente e surpreende de uma forma genuinamente acachapante por não ficar devendo em absolutamente nada aos primatas que vemos em nosso mundo.
Da mesma maneira como ver os macacos ensanguentados ou suados chega a ser verdadeiramente inacreditável, as próprias expressões faciais demonstradas pelos macacos atingem um nível tão elevado que, em certos momentos, é possível sentir lágrimas nos olhos em razão da perfeição magnânima que envolve os personagens criados a partir de captura de movimentos. Aliás, seria terrivelmente injusto e inadmissível não mencionar o talento colossal de Andy Serkis, Nick Thurston e Toby Kebbell, que conseguem conferir aos primatas uma vida e carga dramática à altura do choque provocado por suas aparência, algo que é facilmente compreensível quando consideramos que os diálogos introspectivos entre os símios são consideravelmente mais interessantes que aqueles divididos pelos humanos – por sinal (e sem spoilers), o momento que envolve um reencontro entre Caesar e seu filho Olhos Azuis é a sequência mais emocionante e memorável da película, além de uma de minhas cenas preferidas do Cinema no ano de 2014. E ao mesmo tempo em que Serkis faz de seu líder dos primatas um ser claramente amadurecido em relação à sua versão mais jovem vista no filme passado, Thurston é tão eficiente quanto ao usar expressões pesarosas e cheias de incerteza para ilustrar uma figura inegavelmente insegura, ao passo que o Koba de Kebbell surge como um ser ameaçador e marcante; sem contar que a própria abordagem dada ao personagem serve para enriquecer o longa sobre o ponto de vista temático, pois a razão pela qual jamais somos levados a desprezar este símio parte do fato de que suas motivações são plausíveis mesmo que suas ações sejam indiscutivelmente incorretas.
Contudo, o mais admirável é que, mesmo que perfeitos e deslumbrantes, os efeitos visuais do longa provocam uma reação rara no espectador sem, com isso, eliminar uma única faceta do mérito de sua principal virtude: a riqueza temática. Trazendo uma mensagem profundamente envolvente e necessária para um mundo tão conturbado e incerto quanto o que vivemos atualmente, a produção faz justiça à essência da franquia Planeta dos Macacos e representa um reflexo da sociedade na época em que foi concebida. Num mundo onde as pessoas tendem a ficar cada vez mais cruéis e o potencial benéfico de uma guerra pode ser facilmente aproveitado, o filme ilustra de maneira inquestionavelmente rica a intolerância e truculência que caracteriza os conflitos entre diferentes povos – e se o clímax de A Origem era metafórico por ser ambientado na Golden Gate, o que ocasionava num contraste entre o que acontecia (uma separação entre raças) e onde acontecia (numa ponte, estrutura que serve para conectar pessoas e localidades a outras), O Confronto é igualmente rico em detalhes simbólicos, como a queda de um edifício no terceiro ato da narrativa que indica o desabamento definitivo por parte da moral símia e, consequentemente, humana. Contudo, nada me encantou tanto quanto a alegoria presente a partir do momento em que os macacos passam a portar armas de fogo (o que, graças ao marketing do filme, não representa um spoiler), algo que Caesar era absolutamente contra por considerar uma demonstração da violência humana, apenas porque um de seus líderes ordenou, o que indica a tendência dos primatas em “seguir o bonde” cegamente e corromper um de seus princípios básicos assim como seus inimigos; e nisso, sinto-me prazerosamente obrigado a destacar o brilhantismo que Matt Reeves expõe num longo plano rodado na parte superior de um tanque de guerra que nos oferece uma visão de 360º da desordem que toma conta dos símios.
De forma igualmente admirável, o filme apresenta todo o seu cenário realista abraçando um grau considerável de sutileza, sem jamais panfletar ou privilegiar qualquer um dos lados – mesmo seus simbolismos, que poderiam ser facilmente expostos de maneira didática pelo roteiro (não seria uma dificuldade incluir um momento onde Caesar, no auge de sua decepção para com seu povo, questionasse o fato dos primatas estarem usando armamento humano), brilham com a obviedade dispensada. E mesmo mantendo uma certa distância em relação à pentalogia clássica, O Confronto é tão habilidoso quanto A Origem ao conceber referências e rimas temáticas ou narrativas de forma pontual à cinessérie original (no caso, aos últimos dois capítulos desta: A Conquista do Planeta dos Macacos e A Batalha do Planeta dos Macacos). Aliás, se é preciso apontar um defeito neste longa, haveria de ser os diálogos altamente expositivos entre os seres humanos, que dividem falas artificiais e que dificilmente seriam ditas por adultos (“Como ocorreu tal coisa se você pertence a tal profissão e é formada na faculdade tal?“). Mas ao mesmo tempo em que os humanos acabam sendo os personagens menos profundos e interessantes do longa, a trilha incidental de Michael Giacchino contrapõe um dos poucos, porém desagradáveis problemas do filme anterior ao ilustrar a insegurança em que o universo da série se encontra nesta nova produção sem apelar para a obviedade nem se render à megalomania no clímax da narrativa.
Fazendo Caesar reaparecer como um líder experiente e maduro o suficiente para reconhecer as falhas graves que igualam os primatas aos humanos, Planeta dos Macacos: O Confronto é uma obra que merece destaque por trazer um estofo temático profundamente rico e, com isso, representar um evento raro numa época onde os blockbusters norte-americanos costumam decepcionar por deixar de lado seus respectivos potenciais narrativos, além de ser corajoso graças por contar com um desfecho pessimista (sem spoilers, novamente) que serve para nos alertar do perigo que nós, seres humanos, podemos representar para nós mesmos se não agirmos de maneira racional.
O fato é que, se violência fosse benéfica, o mundo estaria a salvo.
E por que não conseguimos compreender isso? Porque ainda somos uma espécie jovem demais para compreender de forma coletiva.