Retratos Fantasmas (1)

Título Original

Retratos Fantasmas

Lançamento

24 de agosto de 2023

Direção

Kleber Mendonça Filho

Roteiro

Kleber Mendonça Filho

Elenco

Kleber Mendonça Filho

Duração

93 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Emilie Lesclaux

Distribuidor

Vitrine Filmes

Sinopse

No centro do Recife, no século 20, conheça a história do centro da cidade contada a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam comportamentos.

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Retratos Fantasmas | Crítica

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Minha primeira ida ao cinema na vida ocorreu em 2003, quando, aos quatro anos de idade, assisti a Procurando Nemo no icônico Roxy de Copacabana. Desde então, retornei àquele local em momentos que, por serem específicos, se tornaram especiais em minha memória: em 2008, voltei lá para ver O Cavaleiro das Trevas (um filme que obviamente não era aconselhável à minha faixa etária e que representou uma experiência inesquecível para meu “eu” de nove anos); em 2015, arrastei uns dez/quinze amigos para assistirmos ao filme-evento do ano, O Despertar da Força, e chegamos até a tirar uma selfie do grupo inteiro no final para registrar o momento; entre 2017 e 2019, retornei várias vezes àquele cinema para cobrir, como crítico credenciado, o Festival do Rio – e os dois últimos longas que conferi naquele espaço foram Retrato de uma Jovem em Chamas e O Farol. Acho que posso dizer que encerrei em grande estilo um histórico que já não era nada mau.

Hoje, porém, o Roxy é uma lembrança de um tempo sem volta. Em 2020, veio a pandemia de COVID-19, os cinemas do mundo inteiro fecharam por meses (o que trouxe prejuízos óbvios e, em muitos casos, irreversíveis) e uma das salas de exibição mais tradicionais do Rio de Janeiro não pôde chegar ao fim daquele período de reclusão – e nem a mobilização dos diferentes setores culturais (que envolveu campanhas online com milhares de apoios) foi suficiente para salvar o Roxy. A suposição inicial de muitos, claro, era a de que o destino do edifício seria terminar como a maioria de seus “primos”: virando igreja – mas os novos proprietários do imóvel, contudo, já definiram que o transformarão em uma casa de espetáculos. (Como ficará o trânsito – já complicado – da Nossa Senhora de Copacabana, eu não sei.) Aliás, há poucos dias tive o desprazer de assistir a um vídeo que mostra como está o interior do Roxy agora em reforma, com as paredes tombadas, as telas e poltronas retiradas e a paisagem do que já foi um dos cinemas mais emblemáticos da cidade substituída por poeira, itens de construção e buracos/desgastes que expõem os tijolos por trás dos rebocos – uma imagem triste que talvez eu nem devesse ter visto, pois seria melhor preservar, como última recordação, a aparência do cinema glamuroso e histórico que o Roxy foi (não só para mim, mas para várias gerações).

Eu lembrei imediatamente deste vídeo quando me deparei, em certo momento de Retratos Fantasmas, com uma imagem de arquivo na qual o diretor Kleber Mendonça Filho mostra o antigo Cine Art Palácio em sombras enquanto diz, em off, que buscou autorização para retornar ao edifício e filmar seu atual estado (e um pouco do processo de deterioração daquela que outrora foi uma de suas salas de cinema preferidas), mas teve seu pedido negado pelos responsáveis. O que Kleber ganhou com isso é o privilégio de não saber o resultado da desfiguração de um antigo templo (que, nas palavras, soa quase como um velho amigo), ganhando a chance de passar o resto da vida com a lembrança daquele cinema totalmente intocada – uma chance que eu gostaria de ter para com o Roxy.

Construído a partir de fotografias e vídeos caseiros que remontam às memórias de infância e juventude do diretor (cuja voz ouvimos do início ao fim da projeção, em uma narração em off), Retratos Fantasmas é, como O Som ao Redor e Aquarius, estruturado em três capítulos que deixam bem demarcadas as separações entre os diferentes atos da narrativa: no primeiro, somos apresentados a um pequeno Kleber na casa em que cresceu no bairro de Setúbal, em Recife, acompanhando o início da paixão do menino por Cinema (a ponto de rodar seus próprios filmes caseiros), as lembranças que tem de sua querida mãe e os significados que cada detalhe daquele lugar, com todas as mudanças que sofreu, tem para o cineasta. Já o segundo ato/capítulo passa a se concentrar nas memórias que o centro de Recife e seus antigos cinemas de rua representam para Kleber, indo atrás da história de cada um daqueles estabelecimentos, de seus funcionários, dos letreiros e recortes de jornal anunciando suas atrações e da importância que tiveram para a formação de um imaginário coletivo ao atraírem dezenas (talvez centenas!) de milhões de espectadores ao longo das décadas – isto até culminar no terço final da projeção, que enfoca a morte dos cinemas de rua e o processo que os transformou, em sua maioria, em igrejas.

Já prenunciado o tom melancólico que atravessará os 93 minutos de projeção ao abri-la com uma sequência de fotos dos antigos cinemas de Recife ao som de “Happy End”, de Tom Zé (quando a música chega pela última vez ao refrão “E não vai ter happy end”, um corte seco nos leva de um edifício em funcionamento no passado para um local em ruínas no presente/futuro, salientando ainda mais a dor – e mesmo o choque – da perda daquele patrimônio), Retratos Fantasmas se mostra bem mais próximo de Aquarius do que de O Som ao Redor e Bacurau: se nestes dois últimos Kleber buscava compor um panorama amplo do Brasil, com múltiplos núcleos de personagens que, por sua vez, representavam algo maior (em termos sociais, culturais e/ou políticos), aqui (e em Aquarius) o cineasta se propõe a dissertar sobre a formação das memórias afetivas e, mais especificamente, o significado que damos aos espaços físicos que serviram de palco para momentos determinantes de nossa trajetória – um significado que é construído sob um viés subjetivo (ou seja: nós damos sentido a uma casa e a cada detalhe, contorno e adereço que a constitui), mas que, ainda assim, dá vida àqueles lugares, como se estes respirassem, agissem e reagissem à medida que seus ocupantes o fazem.

É o que explica, portanto, o fato de que quando seus moradores se vão, o ambiente como um todo parece morrer junto a ele, como se suas funções vitais aos poucos se desligassem e deixassem, em sua ausência, uma fantasmagoria que se alastra a cada metro quadrado de cada cômodo – uma sensação que Kleber têm ao relembrar sua antiga casa após a morte de sua mãe e que, particularmente, eu tenho sempre que penso no apartamento de meus avós depois de suas partidas: fisicamente, tudo está no lugar (a configuração dos móveis, a conservação de cada item, a distribuição de água e eletricidade de cada sistema… tudo segue operante), mas a alma do lugar se esvaiu de modo irreversível – e, para o lugar em si, não resta outra opção senão definhar gradativamente até chegar a um ponto no qual se transformará, após décadas de história, em… sei lá, alguma outra coisa.

E se me permito incluir detalhes tão pessoais da minha vivência em uma análise sobre Retratos Fantasmas, é porque o próprio filme me permite fazê-lo, já que se trata de um mergulho tão íntimo de Kleber em suas próprias memórias, utilizando-as para discutir os porquês de suas nostalgias, que acaba servindo como estímulo para que o espectador, por sua vez, também revisite e reflita sobre as suas próprias. Esta intimidade trazida pelo diretor, aliás, pode ser resumida simplesmente pela maneira com que este relembra sua falecida – e amada – mãe: não satisfeito em mostrá-la em fotos e vídeos caseiros, Kleber faz questão de nos levar a conhecê-la como indivíduo, a entender o ser humano e a mente pensante que ela era, chegando a resgatar um VHS com uma velha reportagem de tevê da qual participou e que, num detalhe curioso, acaba chegando às mãos do diretor justamente como um presente de um conhecido.

O mesmo se aplica ao próprio modo com que Kleber traz rápidos inserts de seus projetos anteriores (em especial, O Som ao Redor e Aquarius) em meio à montagem dos arquivos caseiros que reúne: em vez de soarem como um recurso meramente narcisista (do tipo “Vejam só os filmes que já fiz!”), estes relances de cenas dos outros longas se revelam indispensáveis para a narrativa que Retratos Fantasmas constrói, reforçando de forma clara, direta ao ponto, como os momentos nostálgicos contidos naquelas imagens de arquivo o influenciaram como artista para o resto de sua vida – e culminaram em obras tão palpáveis e verossímeis, de um ponto de vista de reconstituição de uma realidade/memória antiga, que Kleber responde aos elogios sobre a direção de arte daqueles filmes com um simples “Não, não é direção de arte”.

Porém, um dos pontos mais fortes de Retratos Fantasmas é a narração em off do próprio Kleber Mendonça Filho: evitando conquistar o espectador através de discursos óbvios que busquem atraí-lo emocionalmente de forma artificial, as palavras ditas pelo cineasta revelam uma calmaria que, além de não tentar forçar um sentimentalismo ainda maior do que naturalmente já provocariam, soa sempre honesta para com as memórias de Kleber e a imagem que ele projeta de si mesmo – e, embora eu nunca o tenha conhecido pessoalmente, a impressão que adquiri dele a partir de depoimentos e entrevistas é bem condizente com o temperamento incutido ao texto de sua narração aqui: um indivíduo sereno, que não precisa apelar para transmitir/provocar fortes emoções. Além disso, o realizador demonstra um domínio de palavras simplesmente impressionante, sendo capaz de sintetizar percepções e sentimentos extremamente subjetivos e abstratos (que, portanto, só ele entende exatamente como são e que não há muito como explicar, de modo objetivo) em palavras tão precisas que fazem com que nós captemos perfeitamente a grandeza e o significado real daqueles sentimentos viscerais – um talento que certamente provém do currículo passado de Kleber, que, não esqueçamos, era crítico de Cinema antes de tornar-se cineasta.

então quando ele vai abordar os lugares sejam bairros sejam prédios específicos estabelecimentos específicos ele nunca vai retratar esses lugares como especificamente locais Imóveis não ele vai enxergar esses lugares como entes queridos mesmo com pessoas que fizeram parte de toda a história de crescimento do Kleber e que merecem ser lembradas como Tais então quando ele vai falar sobre o centro do Recife por exemplo ele declara mais uma vez eu te amo eu te amo porque ele diz que quando a gente ama alguém como ele ama o centro do Recife é preciso dizer ele não só faz essa declaração de amor como ele encontra palavras que talvez nunca passassem pela cabeça da gente ao poder de escrever um lugar que a gente ama mas que passaram pela cabeça do Kleber e naquela sequência específica de palavras que a gente nunca viu o seu ordenadas naquela ordem específica primeiro elas não só impressionam pela eloquência de quem diz né a formação da frase em si mas ela também descreve muito precisamente um sentimento que talvez a gente não conseguisse descrever com tanta facilidade em certo momento ele até comenta que o centro do Recife tem um clima decadente de quem foi abandonado sem maiores explicações tem um clima de se não gosta de mim que é uma descrição que Muito provavelmente a gente nem pensaria nela mas que o Kleber pensou e que acaba de escrevendo muito precisamente muito na mosca a grandeza e o porquê daquela grandeza que aquele lugar tem para ele para o Kleber especificamente e essa mesma abordagem se encontra também em toda a maneira com que o Kleber descreve e fala e relembra os antigos cinemas de rua do Recife que não são locais que ele vai relembrar como simplesmente Imóveis como fonte geradora de dinheiro para os seus proprietários não ele prefere transformá-los em personagens quase de carne e osso mesmo e ele também não faz questão de mergulhar numa explicação fisiológica ou psicológica para justificar os efeitos e o impacto que o cinema desperta na gente nas emoções que o cinema desperta na gente não ele prefere ir para um caminho poético mesmo onde através de uma abordagem lúdica Mas também se sustentando em aspectos materiais reais ele vai relembrar e falar sobre o cinema de rua do Recife como entes queridos que se foram como pessoas que respiraram e que construíram suas histórias e que com isso tiveram uma participação muito direta na construção de muitas outras histórias das pessoas que passaram por aquele cinemas ao longo das décadas seja nos letreiros do cinemas que eram enormes e reluzentes E com isso quase que expressavam os sentimentos da própria cidade dos próprios as próprias ruas que abrigavam aquele cinemas sejam nos anteriores seja nas poltronas seja nos detalhes no assoalho no teto na projeção no que quer que seja e mais do que tudo nos funcionários que faziam a roda daquele cinema geral o tempo todo e que mais do que isso ajudaram a dar vida a dar alma aqueles espaços Imóveis aqueles cinemas não seriam que são na memória do Kleber na nossa filho se não fossem figuras Como por exemplo o seu Alexandre Moura que era o projecio do Cineart Palácio e que o Kleber faz questão de transformar num personagem importantíssimo inesquecível desse filme aqui e é dele inclusive o que eu acho que é um dos momentos mais marcantes desse filme nos momentos que eu mais vou lembrar na posteridade que é o momento em que o seu Alexandre o projecionista do Cineart Palácio ele tá falando sobre o inevitável o fim daquele cinema e da relação dele com aquele cinema e que ele fala que ele vai fechar a história dele com aquele cinema com chave de Lágrimas é uma frase extremamente poderosa dita por uma pessoa aparentemente simples mas que sem ela não existiria que a história daquele cinema a história de cada frequentador do Cineart Palácio seria outra se não fosse aquela figura ali Dizendo aquelas palavras e mais ainda o Cléber resgata aquele cinemas não só como ente queridos mas também em verdadeiros templos Nos quais os seus milhões de espectadores vão se converter na verdade em verdadeiros fiéis da cinefilia do ato de ir ao cinema do ato de ser engolidos e pelas experiências nelas projetadas é uma abordagem que transforma cinefilia quase que numa religião mesmo e o ato de ir ao cinema como um ato Sobrenatural transcendental que se torna especialmente visível e nítida quando o Kleber relembra o cine São Luiz que é um cinema famosíssimo do Recife que segundo Kleber foi construído em cima de uma igreja anglicana ou seja é mais simbólico ainda esse ato de retratar cinefilia e o ir ao cinema como uma religiosidade mesmo ele até comenta em certo momento que antigamente as pessoas falavam que no Cine São Luís é para assistir a um Glauber ou um Hitchcock De Joelhos em louvor e ao contrapor a decadência dos cinemas de rua no Brasil ao crescimento exponencial das igrejas evangélicas aqui no país até o ponto que elas superaram as católicas o Kleber acaba posicionando essa justaposição histórica como se acarretasse no mais duro o golpe contra a sua religião que é a cinefilia e é toda essa construção dessa derrocada do cinema de rua do Brasil e o apagamento da memória de um modo geral que torna tão dilacerante a dor de ver esse cinema de rua se fecharem e não só se fecharem mas também constituírem um verdadeiro apagamento da memória do cinema no Brasil tanto é que em certo momento o Kleber visita um edifício chamado Alberto Fernandes e pergunta para o porteiro sobre empresas de cinema que já tiveram ali e o porteiro responde com toda a certeza que nunca houve empresa de cinema alguma naquele prédio sendo que durante décadas Aquele é difícil ali foi o ponto de localização de várias filiais de várias distribuidoras brasileiras aqui no Brasil com décadas de história para chegar no presente e quem está naquele prédio ter certeza absoluta de que nunca houve nada parecido ali nunca houve empresa de cinema alguma naquele prédio é história sendo apagada e em meio a esses três atos/ capítulos bem definidos o Cléber pontualmente você permite criar uma Outra Sequência ficcional como por exemplo aquela que encerra o filme que eu não vou dizer qual é até para evitar spoiler mas são sequências que complementam muito bem a fantasmagoria unida magia proporcionada por aquele cinemas e sequências ficcionais cujas ações muitas vezes a gente acompanha como se a câmera fosse os nossos próprios olhos a maneira como a câmara se move meio que coloca a gente como espectador daquelas ações que estão sendo registradas ali e é perfeitamente apropriado portanto que o Kléber Nossa filho encerre retratos Fantasmas vagando por Recife enquanto observa os edifícios quase como se fosse um fantasma espreita passeando e visitando lugares que foram há muito abandonados e que um dia foram salas de cinema mas que agora se transmutaram em igrejas e farmácias é uma câmera subjetiva que coloca a gente na visão do Kleber e que transforma a gente em fantasmas contemplando um espaço tempo que agora já não nos pertence mais.

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