Não é surpresa que Um Tira da Pesada tenha sido um dos principais projetos a catapultarem a carreira de Eddie Murphy: poucos filmes souberam explorar tão bem o potencial e a persona do comediante a seu favor. Chega a ser bizarro pensar que, em algum momento da pré-produção, tenham sequer cogitado outro cara para interpretar Axel Foley; o papel parece milimetricamente pensado para ser encaixado em Murphy. E o que mais me fascina é que, embora se trate de um personagem que obviamente exige – e muito – o timing cômico mais afiado possível do ator que o interpreta, ainda assim Foley passa longe de se resumir à piada em si.
Sim, Eddie Murphy faz maravilhas ao emprestar pro personagem ritmo, expressividade corporal (o humor físico funciona à beça) e sagacidade ao proferir suas tiradas (que já soam inspiradíssimas no papel), mas, ao mesmo tempo, seu Axel Foley soa como um ser humano, como um indivíduo tridimensional, e não como uma mera metralhadora de piadas e caretas. Seu humor provém de sua inteligência e de seu raciocínio rápido (é sempre um prazer vê-lo performar e inventar um papinho para entrar/sair de uma situação) e, além disso, Foley sabe falar sério quando é preciso – e Murphy é hábil ao transmitir veemência e intensidade ao policial nos momentos mais drásticos da narrativa.
Mas o que mais me surpreende é perceber como Um Tira da Pesada articula e desenvolve seu contexto de tensão racial/social através da ação e da comédia. Mais do que uma aventura divertida sobre um policial engraçado, é uma história sobre um cara que entende o funcionamento do mundo real, que sabe que o “jeitinho” às vezes é a melhor maneira de se solucionar um caso, e que, ao chegar a uma cidade que é a meca da burguesia norte-americana, é obrigado o tempo todo a escutar aulinhas de etiqueta patéticas de patrões e ricaços obcecados em fazer tudo by the book. Pois a mesma sociedade e as mesmas instituições que se gabam de suas “boas maneiras” não hesitam em julgar/prender/perseguir Axel porque… ele é negro. Ou seja: por trás desses gestinhos moralistas e condescendentes da aristocracia, esconde-se seu notório racismo.
Axel, portanto, vem para desafiar isso, resistir ao racismo e, no processo, mostrar aos seus colegas de profissão californianos que, em algumas circunstâncias, a malandragem é o único método viável. Às vezes, é preciso esquecer o livrinho de regras por um minuto e sujar as mãos um pouquinho. Martin Brest realça essa tensão ao mesmo tempo que compõe uma atmosfera ágil, irresistível, a partir desse contraste entre o glamour de Beverly Hills e a personalidade do sujeito que chega para chacoalhá-la (aliás, a ambientação do longa é deliciosa).
E se tem um plano específico que resume isso de forma sutil, mas bacana, é aquele que traz Foley e Rosewood descendo um lance rápido de escadas na saída de um armazém: o primeiro só mete as mãos no corrimão e os usa para dar impulso num salto até o chão, enquanto o segundo faz questão de descer correndo degrau a degrau, certinho. Detalhe rápido, discreto, mas perfeito.
Um Tira da Pesada é diversão do início ao fim.
Aproveite que já está por aqui e assista ao vídeo que gravei sobre o recente Um Tira da Pesada 4, no qual também comento o original de 1984 e as continuações de 1987 e 1994: