À primeira vista, Zootopia pode aparentar ser apenas mais uma entre incontáveis animações comuns sobre animais falantes que vivem em universos fabulescos. Entretanto, não é preciso assistir a cinco minutos do filme até que tenhamos certeza de que se trata de um projeto bem mais audacioso e intrincado do que parecia ser: estabelecendo alegorias e ensinamentos fascinantes, a película aborda temas altamente relevantes em tempos onde mulheres, negros, homossexuais, transgêneros e outras minorias lutam pela conquista de seus direitos. E ao manter esta característica do início ao fim, Zootopia surge como um indício inquestionável de que a Disney está conseguindo alcançar o alto nível das melhores produções da Pixar – algo que vinha se tornando cada vez mais evidente nos ótimos Bolt, Detona Ralph, Frozen e Operação Big Hero (confesso que não sou apaixonado por Enrolados).
Iniciado com uma sequência ambientada numa escola, o longa traz a pequena coelha Judy Hops numa apresentação onde explica uma diferença existente dentro da sociedade dos animais: se no começo das civilizações os predadores tratavam as presas com violência, hoje os dois tipos de animais tentam conviver em harmonia – ainda assim, muitos dos indivíduos classificados como “mais fortes” tendem a agir de modo cruel e preconceituoso com as presas apenas por estas serem menos favorecidas fisicamente. Anos se passam após este prólogo e Judy consegue a proeza de se tornar a primeira coelha a completar o treinamento da polícia, partindo então para a cidade de Zootopia afim de realizar seu sonho de se tornar uma policial. Infelizmente, o fato de ser uma presa faz Hopps ser menosprezada pelo chefe Bogo (um touro), que imediatamente põe a coelha para trabalhar como guarda de trânsito. Contudo, depois que quatorze predadores desaparecem de modo misterioso, a protagonista finalmente ganha a oportunidade de provar seu valor ao assumir a investigação sobre o rapto de uma lontra, aliando-se à raposa Nick Wilde para executar sua tarefa dentro de 48 horas; e, caso não obtenha êxito dentro deste período, a coelha perderá o emprego.
Como já devem ter notado, Zootopia claramente usa a dinâmica entre predadores e presas como uma alegoria para preconceitos como racismo, homofobia e até xenofobia – algo que eu não esperava encontrar numa animação da Disney. Assim, a batalha de Judy Hopps para conseguir ascender como policial remete de modo automático aos recorrentes casos reais de pessoas que são rejeitadas profissionalmente apenas por pertencerem a minorias; e a própria forma como a coelha consegue entrar na força policial lembra de imediato os programas de inclusão social que o governo cria para fortalecer a diversidade e igualdade. Complementando, o excelente roteiro de Jared Bush e Phil Johnston consegue inserir ideias interessantes à maneira como os animais interagem entre si de acordo com o que é moralmente aceitável (em certo momento, a personagem principal diz que “apenas um coelho pode chamar outro coelho de ‘bonitinho’“) e jamais deixa de idealizar metáforas para promover suas ideias, trazendo, por exemplo, uma clara e sutil alusão à transexualidade num trecho onde Judy Hopps diz para uma pequena raposa que “se você quer ser um elefante, seja um elefante. Aqui é Zootopia, um lugar onde você pode ser o que quiser“.
O mais importante, no entanto, é que o roteiro mostra-se maduro e adulto o suficiente para escapar dos possíveis estereótipos que poderiam ser desenvolvidos numa produção menos cuidadosa: num determinado ponto da narrativa, descobrimos que as raposas praticam bullying, mas também sofrem do mesmo por serem “traiçoeiras”. Assim, não existem apenas vítimas ou algozes – e neste sentido, chega a ser surpreendente que uma reviravolta (sem spoilers) ocorrida quando o segundo ato do filme se encaminha para o desfecho faça com que as presas passem a agir de forma intolerante com os predadores, deixando perfeitamente claro que não é através do revanchismo que as minorias receberão o respeito e reconhecimento que merecem. Diga-se de passagem, a própria solução que o longa encontra para esta situação não deixa de lembrar os casos de violência policial contra negros; e como se não bastasse, existe ainda uma crítica à maneira como o Estado e a imprensa promovem o medo como maneira de dominar a população.
Aliás, é interessante que uma produção que se foca em comentários a respeito da luta por aceitação e direitos iguais a todas as minorias traga uma protagonista feminina: encarada como uma coelha (leia-se: uma mulher) forte e que não deixa de batalhar por seus objetivos mais difíceis em nenhum instante, Judy Hopps serve não apenas como um método de combate ao sexismo, mas também para retratar todos os tipos de intolerância; da mesma forma, é significativo que as ações da personagem jamais sejam ofuscadas pelas de Nick Wilde, sem contar que a heroína chega a salvar a raposa macho mais de uma vez ao longo da película. Assim sendo, a protagonista se une ao time de mulheres fortes que vêm estrelando produções hollywoodianas ultimamente – devo admitir que o trabalho de Mônica Iozzi na dublagem brasileira de Hopps não me incomodou tanto quanto esperava e até funciona inesperadamente bem. Enquanto isso, Nick Wilde surge perfeito em cena: concebido como um típico trambiqueiro que carrega dentro de si um imenso potencial desperdiçado ao longo de sua vida, o parceiro de Judy traz consigo uma petulância que aos poucos vai cedendo lugar à nobreza sem que o personagem deixe de soar carismático ou interessante (e mesmo seus momentos mais dramáticos soam igualmente acertados e bem-vindos).
Já do ponto de vista técnico, o filme representa mais um marco da Disney: idealizada a partir do design de produção fenomenal pensado por David Goetz, a cidade de Zootopia chama a atenção desde o princípio graças ao conceito de diferenciar cada bairro de acordo com as condições climáticas dos mesmos ou com os tipos de animais que ocupam cada área. Nisso, existem múltiplos habitats que contam com características visuais marcantes (uns são gelados; outros são tropicais) e os bairros refletem o tamanho de seus moradores (a zona em que vivem os ratos, por exemplo, faz com que Judy Hopps pareça gigante), ao passo que cada veículo aparenta ter sido projetado especificamente para determinadas espécies; e também são fantásticas as estações de trem (cuja arquitetura faz com que seus andares soem complexos esteticamente) e os elevadores para hamsters. Tudo isto torna o resultado final do longa memorável – e a situação melhora com o bom humor do roteiro, que envolve tiradas certeiras e referências eficazes que vão de O Poderoso Chefão a Breaking Bad.
Beneficiado ainda pela ótima trilha de Michael Giacchino (que salta com fluidez entre os momentos mais cartunescos e os mais intimistas), Zootopia tropeça somente em alguns diálogos expositivos que tentam martelar forçadamente as mensagens que a produção desenvolve a respeito de preconceito e diversidade. Além disso, os diretores Bryon Howard e Rich Moore pecam na maneira clichê com que passam a tratar os antagonistas do filme em seu terceiro ato, apelando para enquadramentos inclinados de baixo para cima no objetivo de ilustrar a vilania de uma certa personagem (e o que dizer a respeito do chefe Bogo e de suas súbitas mudanças de comportamento?). Para completar, embora nunca se torne cansativa ou deixe de representar um experiência dinâmica e espirituosa, a película acaba se revelando um pouco mais longa e extensiva que o necessário – e o terço final da narrativa traz resoluções que forçam demais a suspensão de descrença do espectador, exigindo que este aceite coincidências que dificilmente seriam previstas até mesmo pelo mais genial dos planejamentos arquitetados pelos heróis.
Contudo, não há nenhum ponto negativo que diminua esta que é, sem dúvida alguma, uma das animações mais maduras e ambiciosas que a Disney produziu nos últimos anos. Funcionando ainda como uma divertida e bem humorada aventura policial, Zootopia é um filme capaz de agradar o público infantil simplesmente por servir como um entretenimento ágil e fabuloso. Já os mais velhos podem apreciar o projeto com a mesma intensidade pelo mesmo motivo e, se forem evoluídos o bastante, também serão encantados com as metáforas intrigantes e mensagens sobre a importância de respeitar aqueles que foram considerados “diferentes” ao longo de toda a História da humanidade.
É, parece que a Disney de fato se transformou numa nova Pixar.

