George Romero

Dossiê George Romero | Parte II: Para Além dos Zumbis

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George Romero, realizador, fez seis filmes que utilizaram como base os mortos-vivos, sendo os três primeiros os mais influentes e cultuados de sua filmografia. Entretanto, o corpo de sua obra não é composto apenas por estes filmes: há ainda, no período que existe entre a realização de A Noite dos Mortos Vivos (1968) até seu último longa, Ilha dos Mortos (2009), pouco mais de 10 filmes (além de seu trabalho televisivo) realizados pelo cineasta, e que costumam, em grande parte, ser esquecidos ou mesmo negligenciados.

E é sobre estes filmes que Sequeira Kamiya e Pedro Guedes irão discursar aqui, na segunda parte do dossiê deste cineasta que, apesar de marcado pelos zumbis, possui filmes que conseguem se destacar dos mortos-vivos e, ora fracos, ora interessantes, ora intrigantes, não conseguem nos deixar indiferentes!

Confira também a parte I do dossiê!

 

There’s Always Vanilla (Idem, 1971)

Primeiro projeto de George Romero após o supersucesso de A Noite dos Mortos-Vivos, este There’s Always Vanilla é talvez o ponto mais fora da curva de toda a sua carreira: na tentativa de evitar ser reconhecido apenas como realizador de horror (uma tentativa que, logo em seguida, ele perceberia ser inútil), ele decidiu criar esta comédia romântica sobre um jovem ex-militar que, ao regressar à sua cidade natal, conhece – e, claro, se envolve – com a modelo Lynn. Nada de mortos-vivos, elementos sobrenaturais ou qualquer resquício do Cinema de terror; o que há aqui são apenas um caso amoroso, seus desdobramentos e os relatos do protagonista após tê-lo vivido.

Assistindo ao filme hoje, porém, fica fácil entender por que Romero logo resolveu voltar ao Terror, deixando de lado a vontade de fugir do rótulo de “cineasta de horror”: There’s Always Vanilla é o tipo de obra que não parece ter razão alguma para existir – e que, por consequência, torna inevitável a sensação de que Romero só a concebeu mesmo por uma questão de status, para que o público e seus colegas de profissão não o encarassem como o que ele é (um cineasta de horror). O que há no filme não é uma vontade artística ou algo a dizer sobre seja lá o que for; apenas um ímpeto por parte de Romero de “ficar bem na fita”.

E, embora traga um ou outro momento mais inspirado, o fato é que mesmo o senso de humor habitual do diretor mostra-se frágil aqui, aspirando a uma dinâmica woodyallenesca que em nada combina com a atmosfera pseudo-anárquica que o filme apresenta em outros momentos. Não é à toa que o próprio George Romero considera There’s Always Vanilla seu pior trabalho.

Pedro Guedes

 

A Estação da Bruxa (Hungry Wives/Season of the Witch/Jack’s Wife, 1972)

Filme de múltiplos nomes, mas Jack’s Wife é o que ganha mais destaque neste filme. A Noite dos Mortos Vivos era sobre permanecer dentro da casa, e Estação da bruxa não foge tanto desta premissa. Joan Mitchell vive presa dentro de seu próprio cativeiro (como se apresenta na alucinação do início do filme). Encontra-se presa desde o título, é relegada ao seu papel de esposa e mãe, sua família já se afasta o tempo todo. Sua filha a despreza, seu marido não reconhece sua existência. Sua vida pequeno burguesa, afundada em mediocridade, não possui escapatória nem em seus sonhos, que vão e voltam no decorrer do filme, e também não lhe dão alternativa, visto que apresentam sempre o fatalismo de estar submetida a alguém, uma figura mascarada, a tentativa de invasão ao domicílio.

Sua fuga, a bruxaria (e a traição, mas sem realmente fugir de nada, apenas mais uma máscara, mais uma coleira), apesar de seus momentos mais inesperados também acaba sendo mais uma instituição, outra prisão um pouco mais aberta. Percebo, principalmente no início deste filme, como também em sua sequência final, a capacidade que George Romero tinha para montar seus filmes, como também para influenciar este processo (até porque em alguns casos não foi responsável diretamente pela montagem) algo que irá ser depurado no decorrer de sua filmografia, ao menos até seu último grande filme, Terra dos Mortos.

Há também um trabalho com os atores que não existia em Noite, sobretudo em como eles encaram um ao outro, tem seus pequenos olhares de cumplicidade (para uns) e de desprezo (para outros), um se chocando com o outro. A economia narrativa de Romero, que já apresentava-se rica em Noite, e que ganhará contornos mais bem explorados em The Crazies e, sobretudo, em Martin e O Despertar dos Mortos, tem seus momentos interessantes neste filme, que, sobretudo, é muito mais a exposição de uma fragmentação da personagem principal (seus sonhos e a realidade vão se intercalando durante o filme, no final a coisa finalmente se concretiza como um plano/contraplano). Não sua transformação, mas talvez o que hoje possamos chamar de desconstrução, ou seja, seu processo de individualização (lembremos do título original), que não a liberta de sua coleira mas gradualmente lhe dá uma outra, um pouco mais longa. Porém, ainda, uma coleira.

Sequeira Kamiya

 

O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973)

Depois da realização de dois filmes mais focados em personagens, em escala menor, George Romero sobe alguns níveis para a realização de um filme um pouco maior (uma transição que atingiria seu ápice em O Despertar dos Mortos).

Deixamos de acompanhar ambientes fechados, o cotidiano, e algo de novo surge sob o sol. A casa pegando fogo no início já dá a dica: não se esconde mais de nada. Possivelmente o filme de zumbi de Romero que não apresenta nenhum zumbi de fato, O Exército do Extermínio é lembrado constantemente por suas situações absurdas, que passam tanto pelos civis, estes que sucumbem a um misterioso vírus enlouquecedor, aos militares, lunáticos que levam a burocratização e a tecnocracia ao limite do razoável.

Ao reassistir este filme, me peguei pensando em uma possível sessão dupla que este daria com o Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964) de Stanley Kubrick. Pode ser uma escolha um tanto óbvia, porém não infundada, e por um aspecto: seu estranho senso de humor, que a todo tempo aponta em direção à sátira, nos revela, em ambos os filmes, o completo oposto: das situações mais cômicas, passamos a cenas verdadeiramente trágicas. Pensemos, neste filme, nas cenas envolvendo Lynn Lowry, de sua primeira aparição até sua eventual morte, passando pelo incesto e o suicídio de seu pai), principalmente pela forma patética como se apresentam (quase tudo envolvendo o exército que dá titulo ao filme).

Ou mesmo no processo de enlouquecimento que se dará em cada personagem, não importando sua escala, e como ela se apresenta; gradual, espontânea, lenta e dolorosamente. Uns percebem, outros apenas agem como se tudo fosse naturalizado. Uma vez naturalizado, a contestação torna-se mais difícil (coisa que o cinema, ao menos aquele que foge da praga do naturalismo, dificilmente deixa passar despercebido, ao menos sem uma chacoalhada), e enquanto isso o exército queima e pilha os cidadãos, e os loucos civis saem atirando para cima um do outro.

De cada cena mais humorada parte outra mais ácida, no sentido da própria corrosão do que o filme antes havia apresentado (os fins de ambos os personagens mais focados do filme, o bombeiro David e o Col. Peckem, quando se encontram pela primeira vez, trocam olhares pela primeira vez, em meio a uma quarentena rigorosa, e ambos simplesmente sentem um desprezo mutuo, justo por, mesmo sem saberem, serem os mais parecidos naquela situação toda), mostra que este filme é, em vários sentidos, o filme que se passa no meio entre A Noite dos Mortos Vivos e O Despertar dos Mortos.

Sequeira Kamiya

 

Martin (Idem, 1978)

Ápice destes primeiros filmes dos anos 70, realizado 5 anos após o lançamento de The Crazies, como também pode ser considerado o filme que marca o fim de uma fase de George Romero. Possui o foco em um personagem, o Martin que conhecemos do título. Em sua apresentação, vemos o jovem entrando em um trem. Descobriremos mais tarde que este o levará ao encontro de um parente seu, que irá abriga-lo. Mas Martin, ao entrar no vagão, percebe uma mulher, esperando do lado de fora. Ele espera até o anoitecer, e, armado de seringas, invade o quarto da moça. Eles brigam, mas Martin parece estar mais nervoso que ela. Ele droga ela, confusa, e, após algo que poderíamos classificar como estupro, corta seus pulsos e… bebe o sangue de sua vítima.

“Nosferatu”, é como lhe chama seu parente, que lhe dá um teto e emprego, mas o detesta do fundo de sua alma. Realiza todos os procedimentos para suprimir as habilidades de um vampiro, estes que dão a Martin mais motivos para debochar de seu parente fanático. O decorrer do filme contará com trechos em que somos lançados ao passado de Martin, e sua perseguição por conta de seu vampirismo, um passado que alega ser distante. Entretanto, seriam estas realmente memórias, ou apenas alucinações? O jovem Martin é vampiro que droga o sangue de suas vítimas (“batiza” o sangue) ou um viciado bebedor de sangue, um adolescente problemático, rebelde sem causa? Estas respostas o filme não dá, apenas indica evidências.

Já não há também a atmosfera do Nosferatu murnauniano, já que o vampiro de George Romero nem liga se é vampiro mesmo. Como em A Estação da Bruxa (e muito mais aprimorado que no filme de 72), o místico não se apresenta como tal, não se manifesta na natureza (ao menos isto fica a segundo plano). O vampirismo que Romero apresenta é outro, muito mais cru, em um filme que podemos apontar como um corpo estranho muito bem-vindo. Sua violência já se dá de outra maneira, e a colaboração com seu maquiador habitual, Tom Savini (que começa a trabalhar com Romero aqui) dá as cenas de violência um realismo realmente incômodo, com a abjeção que estas pedem.

Martin, o personagem, entretanto, é quase um cômico do cinema mudo, daqueles que vão ressignificando (de forma física, principalmente) aquilo e aqueles pelos quais passa: pega os “artefatos” que deveriam lhe dar repulsa e coloca em sua boca, busca novas vítimas e descobre o adultério, provoca brigas entre gangues e a polícia, brinca ora como gato ora como rato, impossibilitado pela chance de ser indiferente, por conta de sua própria condição. É esta oscilação entre o humor e a violência (e a repulsa que ambos causam), suas personagens nada identificáveis (ainda bem!), entre este místico que surge apenas das sugestões provenientes das atitudes humanas, que torna Martin um dos filmes mais memoráveis de George Romero.

Sequeira Kamiya

 

Cavaleiros de Aço (Knightriders, 1981)

Em 1981, durante o período que hoje vemos como o ápice de sua carreira (comercial, ao menos, que vai de O Despertar dos Mortos até A Máscara Negra) George Romero realizou este grande filme disfarçado de pequena produção, talvez a sua mais pessoal até então. Estão presentes aqui vários de seus amigos e colaboradores, entre outras participações ilustres (Brother Blue, interpretando a si mesmo). Sua história é simples, como as mais belas sempre são: uma trupe composto por adeptos de um código medieval próprio, liderados por Billy (Ed Harris), e seus cavaleiros de motocicleta. Todos viajam juntos ao redor dos Estados Unidos, realizando acampamentos que atraem público com seus desafios envolvendo motos e duelos entre os cavaleiros.

Este filme prova que as vezes classificar obras em gêneros pode mais dificultar que facilitar sua compreensão. Knightriders não é nem ação, nem comédia física, nem romance, mas tudo isso esta lá. Se é possível rotula-lo, e com certeza estarei sendo redutor ao faze-lo, seria como um dos grandes filmes de amizade já realizados (junto com Hatari, Dersu UzalaTambém Somos Irmãos, Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle, Na Trilha do Sol, entre outros). Suas personagens vivem um código próprio, entram em conflito com as autoridades e contra si mesmos.

Há uma longa cena (existem várias destas no filme, algumas excelentes, outras mais cansativas, o que talvez torne os quase 150 minutos deste filme um tanto desafiadores para alguns) dentro de um acampamento improvisado, onde Billy (Ed Harris) e Bagman (Don Berry) tem uma conversa sobre um possível patrocínio para o grupo. Bagman defende que isso trará prosperidade a seus membros, que precisam de seu líder estável, mais que suas ideias. Billy, após algumas horas, queima o contato do patrocinador, acorda Bagman e, pronto para partir, afirma o oposto: não importa se ele vive ou morre, importa é que seus ideais permaneçam, ajudem a guiar aqueles que não se conformam com a situação, lhes dê outra perspectiva de vida. Bagman não entende nada, e Billy pega sua moto e sai de cena.

Duas indicações: Billy possui ideais fortes, que ressoam de forma igualmente forte em seus companheiros (mesmo que de forma contestadora, como ocorre várias vezes no decorrer do filme). Mas Billy, fisicamente, é fraco: perde todos os duelos que participa dentro do filme, está sempre machucado. Necessita, sempre que perde, da ajuda de seus companheiros, que mantém a coroa em sua cabeça. O fato de ser rei mostra que nem sempre foi assim, e também que sua passagem por estes caminhos já está chegando ao fim. Mas a grandeza de seu impacto, na mobilização que suas ações tem, nos grandes duelos entre motociclistas/cavaleiros (entre si e contra gangues rivais, neonazis, etc), na grandeza com que dirige sua moto pelas estradas, visando um futuro que ainda não vemos, mas que são indicados por seus olhos (aí sim, os grandes momentos do filme): isto também está ali, naquele homem frágil e explosivo.

Cada duelo é sentido na própria pele, George Romero (que também montou este filme) atinge um ápice de sua capacidade analítica (minto: isto acontece pouco antes em O Despertar dos Mortos e atingiria níveis ainda mais altos pouco depois em O Dia dos Mortos), ao dar atenção a cada movimento, cada curva de motocicleta, cada motoqueiro surgindo e se integrando a um organismo muito maior que si próprio (quando os cavaleiros retornam ao seu acampamento, após serem seduzidos e decepcionados pelo mundo moderno, e são recebidos por um Ed Harris com lágrimas nos olhos, sem verborragias excessivas, apenas um sorriso no rosto). Suas ambições só não são maiores que as do mundo em que habitam, e mesmo o idealista Billy “Shakespeare”,entra em choque com aquele, choques estes que irão marcando seu personagem e todos os outros até o final do filme. Filme que transita (não sem alguma dificuldade) entre todos esses aspectos aparentemente conflitantes, sempre percorrendo estes espaços hostis com ambos os pés no chão.

Em suma, é tudo que Capitão Fantástico (2016), Soul (2020) e The Good Place (2016-2020) não são (há uma lista, mas creio que estes sejam os mais representativos desta categoria de filme a ser analisada futuramente: o reacionarismo fofo).

Sequeira Kamiya

 

Creepshow – Arrepio do Medo (Creepshow, 1982)

Realizado em formato episódico, esta antologia foi roteirizada por Stephen King, que desde a década de 70 era amigo de George Romero, chegando inclusive a realizar uma ponta em Cavaleiros de Aço. A premissa da produção foi realizar uma espécie de homenagem aos quadrinhos de horror, que nos Estados Unidos tiveram sua era de ouro entre as décadas de 40 e meados dos anos 50 (destaque para a editora EC Comics), até seu eventual declínio decorrente da censura que aplacou os quadrinhos com o Comics Code Authority.

E esta homenagem surge ao longo de todos os episódios (o prólogo, com o pai retirando o quadrinho de seu filho, é a referência mais óbvia a toda a repercussão que levou ao código de censura), através de filtros que são colocados e que emulam os quadros tradicionais dos quadrinhos de horror, realmente ornamentos. As cores, artificiais, surgem de repente, e acabam dando ligação entre os capítulos, sempre aparecendo em momentos semelhantes (o medo, a loucura, a surpresa). Dos cinco episódios, dois merecem destaque: Indo com a maré e Vingança Barata.

Indo com a maré, que conta com um jovem Ted Danson e um Leslie Nielsen pós-Airplane (porém antes de engendrar nas inúmeras paródias que estreou a partir dos anos 80), hiper-psicótico, vingativo, ilustra bem uma história típica destes quadrinhos dos anos 50: a história de um adultério e sua repercussão. Já Vingança Barata é a história de um milionário germofóbico, recluso em seu caríssimo apartamento, e que começa e perceber uma invasão de baratas em sua propriedade após determinadas atitudes suas conduzirem a uma tragédia.

Como podemos entender, são captadas as principais temáticas mais típicas das histórias em quadrinhos de horror, porém o que carece neste filme é o impacto que cada quadro, cada sequência possui nos quadrinhos, coisa que este filme absorve de forma ornamental e muito pontual, algo que outros filmes já fizeram, ou mesmo séries de televisão, se pensarmos que algo como The Twilight Zone bebe de fontes muito parecidas deste Creepshow, porém com um resultado muito mais interessante, talvez também pela economia narrativa que a televisão impunha.  Romero viria a realizar, após este filme, a série Tales from the Darkside, que teria algum sucesso a mais, ao menos por uns poucos anos.

Sequeira Kamiya

 

Instinto Fatal (Monkey Shines, 1988)

É curioso perceber como, a partir de certo momento, George Romero passou a demonstrar um interesse quase obsessivo por narrativas que girassem em torno de personagens aterrorizados por eles mesmos. Sim, a hexalogia dos mortos já lidava com ameaças que a própria Humanidade criara para si (monstros; opressão; consumismo; militarismo; autoritarismo; etc), mas isto sempre dentro de uma macro-escala. Em outras obras, porém, o que passou a motivar o medo e a luta da maioria dos (anti-)heróis romerianos eram avatares distorcidos deles mesmos ou sentimentos/impulsos perigosos que se materializavam na forma de um vilão – como acontece neste Monkey Shines (traduzido como Instinto Fatal) e que se tornou uma constante na filmografia do cineasta.

Com um início que se mostra econômico e objetivo ao estabelecer o protagonista Allan Mann como um sujeito feliz, robusto e dotado de vigor físico, Monkey Shines logo contrapõe esta imagem inicial ao atropelamento que o rapaz sofre e que o deixa tetraplégico – ou seja: toda a vitalidade que vimos na cena de abertura é substituída pela imagem de Allan aprisionado em seu próprio corpo imóvel. No entanto, quando um cientista decide extrair células do cérebro de Allan para injetá-las em uma macaquinha de laboratório, esta passa a corresponder aos impulsos e às vontades do protagonista, como se estabelecesse uma conexão neural com ele (quando o sujeito precisa levantar a mão, a macaca o faz por ele). Mas é claro que, sendo o filme que é, logo o animalzinho inofensivo se revela uma máquina de matar capaz de machucar até mesmo as pessoas que Allan mais ama.

Embora mais longo do que precisava e se perdendo pontualmente ao criar sub-arcos desnecessários (o sadismo que Allan exibe de vez em quando, por exemplo, acaba não servindo de muita coisa – embora permita que o ator que o interpreta, Jason Beghe, crie uma performance complexa ao saltar do 8 ao 80, da empatia à pura maldade, em questão de milissegundos e de uma sutil mudança de expressão), Monkey Shines é uma obra na qual George Romero convence o espectador de como a obsessão em vencer nossos próprios obstáculos pode se transformar em uma ameaça para nós mesmos; como o desespero em buscar uma solução rápida para um problema grave tende a atenuá-lo. Sim, a macaquinha é o monstro físico do filme, mas o espiritual é o próprio Eu.

Pedro Guedes

 

Dois Olhos Satânicos [Segmento “O Estranho Caso do Sr.Valdemar] (Two Evil Eyes/Due Occhi Diabolici, 1990)

Dois filmes dentro de um, ambos inspirados em contos de Edgar Allan Poe. Focaremos mais no episódio de George Romero, pois “O Gato Preto”, segmento de Dario Argento, merece uma análise a parte, mais detalhada.

O Estranho caso do Sr. Valdemar, segmento de Romero, é inspirado no conto homônimo de Allan Poe, que trata de um homem a beira da morte, sua esposa e um médico/hipnólogo, amante da esposa do Sr. Valdemar. Aqui encontramos, talvez como em poucas vezes, um caso onde Romero realmente puxa aspectos metafísicos para sua obra (apesar do físico ser de importância fundamental nesta relação), algo que também está no segmento de Dario Argento.

Porém, se no episódio deste termos um caso de entrada na psique humana, seu choque e subsequente emersão para o mundo material, o de Romero acaba dentro de um estranho limbo. Não apenas o de Sr. Valdemar, preso entre a morte e a posterioridade, mas também de sua esposa e seu médico, ambos jogando um estranho jogo de ganancia, que passa longe do texto de Allan Poe e sua relação com a metafísica. Diferente de Argento, Romero não soube passar da esfera da superfície (o que não denota problema, visto os filmes que realizou anteriormente como A Noite dos Mortos Vivosfilme calcado completamente na superfície) para a da materialização da psique humana, e acaba resultando em um episódio interessante, porém raso, tal como aconteceu com Creepshow ao tentar adaptar a essência dos quadrinhos de horror.

Sequeira Kamiya

 

A Metade Negra (The Dark Half, 1993)

Se em Monkey Shines o Eu ainda era simbolizado por um agente externo (uma macaquinha superinteligente de laboratório), em A Metade Negra o herói enfrenta literalmente uma versão dele mesmo. Aqui, George Romero acompanha o escritor Thad Beaumont, que, por questões pessoais, assina sempre suas obras sob o pseudônimo de George Stark. Depois que um chantagista surge para ameaçar revelar seu segredo, porém, Thad decide ir a público por conta própria e expor a verdade sobre George Stark (em vez de, afinal, cumprir com a chantagem). No entanto, após fazer um enterro simbólico para seu pseudônimo, este se materializa, se levanta do solo e começa a assassinar todas as pessoas com quem Thad teve contato nos últimos dias, apontando em direção à sua esposa e aos seus dois filhos.

Ou seja: mais uma vez, o vilão romeriano volta a ser uma encarnação distorcida dos medos, das obsessões e dos anseios do herói. Desta vez, o vilão é ninguém menos que o pseudônimo de um artista com bloqueio criativo, materializando a insegurança que mesmo o mais experiente dos autores pode – e costuma – experimentar em algum momento de sua carreira; a diferença é que, aqui, esta insegurança culmina no extermínio de todos aqueles que, afinal, compõem a vida (e, por consequência, a identidade) de Thad. Um indivíduo que não se aceita está automaticamente criando um monstro para si – e é isto que Romero demonstra em A Metade Negra.

O clímax desta dualidade, como não poderia deixar de ser, é também o clímax do filme em si, quando percebemos como a insegurança de Thad – que o leva, inclusive, ao bloqueio criativo – se manifesta contra seus entes mais queridos. É a batalha suprema do Eu; do herói contra ele mesmo; do protagonista contra sua versão sombria – e é isto que torna A Metade Negra um título curioso dentro da filmografia de Romero.

Pedro Guedes

 

A Máscara do Terror (Bruiser, 2000)

Último trabalho de George Romero antes de voltar a se aventurar (em 2006) no universo de seus zumbis, com a segunda metade da hexalogia dos mortos, A Máscara do Terror conta, mais uma vez, com um protagonista cujo horror é motivado por suas obsessões e pela (falta de) identidade – a diferença é que, se antes o herói era obrigado a lutar contra versões deformadas e aterrorizantes dele mesmo, desta vez o personagem principal aceita a monstruosidade que surge em seu Eu, descobrindo que seu sadismo poderia ser empregado para eliminar todos aqueles que perturbam sua vida.

Estabelecendo desde o princípio a vida do protagonista Henry como um desgosto contínuo e absoluto (mesmo ele sendo rico e trabalhando numa bem-sucedida revista de moda, a Bruiser), A Máscara do Terror gira em torno de um sujeito ridicularizado no trabalho, traído pela esposa, destratado por todos na rua e visto com desprezo até mesmo por seu cachorro, que range os dentes quando ele se aproxima. Cercado por um universo de futilidades no qual a beleza física é o que mais importa, Henry um dia acorda com uma máscara branca cobrindo seu rosto e “apagando” sua verdadeira aparência, tornando-se impossível de ser removida. A partir daí, contudo, ele percebe que a melhor solução para correr atrás de sua própria identidade, de quem realmente é, envolve matar todas as pessoas que o incomodam no dia a dia, dando início a uma chacina sem igual.

Embora contando com sequências visualmente criativas (como aquela que envolve uma mulher, um cabo de extensão, uma vidraça e… ora, a gravidade) e com um protagonista cujo caráter ocasionalmente o faz questionar suas próprias crueldades (ao ver alguém que julgava ser seu inimigo elogiá-lo pelas costas, Henry percebe o quão errado seria matá-lo, o que é de uma ambiguidade interessante), A Máscara do Terror raramente vai a fundo nos comentários que tenta criar acerca da indústria da futilidade ou da banalidade dos nossos tempos, soando como uma obra divertida em sua contextualização, mas pouco mais que isso.

Pedro Guedes

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