O mundo já tem violência demais. E não estou falando apenas das centenas de milhares de pessoas que morrem por ano em zonas de conflito; estou falando de um tipo de violência que pode não resultar em agressões físicas, mas que está infiltrado nas pequenas relações sociais que temos em nosso cotidiano. Basta dar uma rápida passada pela timeline do Twitter para encontrar diversas pessoas xingando umas às outras, empregando ataques ad hominem e, em alguns casos, ameaçando os outros de morte. (Sim, eu sei que faço parte disso: nunca ameacei – nem ameaçarei – ninguém, mas já tive minhas “tretas” e já insultei deliberadamente quem costuma promover o ódio por aí. E, muitas vezes, errei ao exagerar em minhas reações.) E o mais triste é perceber como tudo é defendido pelos “passadores de pano” oficiais da internet: fulaninho pode ter dito a coisa mais repugnante, condenável e desumana do mundo; sempre haverão centenas de cordeirinhos fiéis que defenderão o indefensável.
Assim, toda e qualquer manifestação de amor, carinho e união torna-se não apenas louvável, mas indispensável em um momento como este. A quantidade de pessoas se agredindo (verbal e fisicamente) na internet e na vida real já passou de todos os limites – e, além disso, o ser humano parece ter uma inclinação natural ao negativismo, a dar mais atenção àquilo que lhe faz mal do que àquilo que lhe faz bem. Eu costumo dizer, para os meus amigos íntimos, que é muito mais deixar uma pessoa triste do que alegre. Sabe por quê? Porque boa parte da sociedade está mais interessada em reclamar e em apontar dedos do que em elogiar o outro. E, por isso, não há nada mais admirável (e lindo) do que o amor entre duas ou mais pessoas – e não, não me refiro somente ao amor entre a comunidade LGBT; me refiro também ao amor que um amigo pode ter pelo outro e que merece ser expressado com clareza, para que o outro saiba ser amado. Abraços, beijos e sorrisos não são atributos que se joguem fora.
Não adianta negar: o mundo é um lugar diversificado. E ainda bem que é! Afinal, imagine uma sociedade em que todos vivessem exatamente da mesma forma e jamais fossem surpreendidos positivamente. É fascinante que existam tantas diferenças – só há duas coisas que, de fato, deveriam ser iguais para todo mundo: 1) respeito e 2) oportunidades. Fora isso, a realidade é cheia de variedades. E é justamente esta realidade que a Arte se encarrega de refletir; seja em filmes, pinturas, livros, músicas, games ou histórias em quadrinhos. Há milhões de culturas, etnias, classes socioeconômicas e orientações sexuais diferentes espalhadas pelos quatro cantos do mundo – portanto, não é justo (e nem faz sentido) dedicar toda a produção artística da História aos homens brancos, cis gênero, heterossexuais, de classe média/alta e amamentados pela imposição dos “valores” norte-americanos. Por isso, é importante que existam cada vez mais e mais e mais participações representativas dentro da Arte. O que os preconceituosos chamam de “lacração” é, neste caso, uma representação de como o mundo realmente é – mesmo que a representação em si esteja dentro de uma obra de ficção e/ou fantasia.
Infelizmente, o Brasil (e boa parte do mundo) está caminhando a passos largos em direção ao passado e ao obscurantismo. Em 2011, um cara que aconselhava os pais a “consertarem filhos gays na base da porrada” era considerado uma aberração; hoje, no entanto, ele é presidente do Brasil. Alguma coisa mudou – e para pior. Os homofóbicos sempre existiram, mas agora se sentem encorajados e se dispõem a demonstrar sua homofobia sem nenhum constrangimento. E o fundamentalismo religioso que tomou conta do país faz questão de agravar ainda mais a situação: há diversos líderes de igrejas usando a religião para propagar a intolerância e tratando a homossexualidade como uma “doença” a ser “curada”; há deputados federais/estaduais que se recusam a apoiar o casamento gay porque acham que isto estimularia alguém a se casar com cachorros, com cadáveres ou com árvores (ignorando, claro, que o casamento exige uma coisinha chamada consentimento das duas partes); há pessoas que defendem que, a partir do momento em que toleramos a homossexualidade, abrimos um precedente para que um dia passemos a tolerar a pedofilia (isto não é crime, não?); etc. Para um país que diz ter orgulho de sua pluralidade cultural, o Brasil vem se mostrando cada vez mais interessado em estabelecer um único padrão para todos.
Marcelo Crivella é intimamente ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, atuou como missionário, pastor e bispo durante muitos anos, foi eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016, não fez absolutamente nada em três anos de mandato e seu impeachment já vem sendo apontado há um tempinho. Sabendo que a população percebeu sua inatividade e que precisa urgentemente fingir que está fazendo algo pela cidade (caso contrário, sua reeleição pode estar ameaçada), Crivella decide tomar uma atitude: dizer que vai proteger as nossas criancinhas. Como? Mandando uma equipe à Bienal do Livro para recolher uma HQ dos Vingadores (A Cruzada das Crianças, de Allan Heinberg e Jim Cheung) que traz dois homens se beijando, alegando se tratar de “conteúdo pornográfico”. (Suspiro) Em outras palavras: o prefeito do Rio de Janeiro não quer que crianças saibam que homens podem se envolver com outros homens e que mulheres podem se envolver com outras mulheres. Quando homens e mulheres surgem se beijando, não há problema algum – mas quando duas pessoas do mesmo sexo surgem se beijando, isto é automaticamente classificado como um ato sexual. E quando uma obra mostra um beijo homoafetivo, ela deve ser proibida para menores de 18 anos.
Como é o nome disso mesmo…? Ah, lembrei: CENSURA.
O que Crivella não parece entender é que: 1) censurar uma obra sempre deixará as pessoas mais interessadas em conferi-la, servindo, portanto, como uma propaganda não intencional; 2) não cabe ao Estado determinar quais obras o cidadão pode ou não consumir (as pessoas que compõem o governo não gostam de produções que representem a comunidade LGBT? Azar o delas; os cidadãos comum têm o direito de assistir a estas produções.); 3) um beijo homoafetivo não é “pornografia”, apenas… um beijo (sabe todas aquelas cenas de beijo entre homem e mulher que ocorrem no clímax de qualquer superprodução hollywoodiana? Então, é tipo isso, só que com duas pessoas que pertencem ao mesmo sexo.); 4) o público-alvo dos quadrinhos de super-heróis já não é mais crianças há um bom tempo; 5) mesmo que fosse, não há problema algum em ver duas pessoas se beijando; e 6) por mais que os intolerantes tentem impedir a evolução da Humanidade, o máximo que eles conseguirão é atrasá-la. Em vez de se preocupar com as prioridades reais da prefeitura do Rio de Janeiro (as famílias que ficam desalojadas graças às chuvas torrenciais; a falta de repasse para a saúde pública; as imensas crateras que permanecem abertas no asfalto da cidade; etc), Crivella prefere perder tempo censurando obras que celebrem a diversidade.
Dito isso, Crivella merece todo o repúdio pelo ato covarde, bárbaro e anti-cultural que está praticando. A postura homofóbica é condenável por si só, mas tentar impô-la para a sociedade (passando por cima do conceito de “liberdade individual”) é uma atitude, no mínimo, antidemocrática. O que gente retrógrada como Crivella faz nada mais é do que um esforço para nos arremessar de volta aos piores momentos da nossa História – e, por mais que os preconceituosos insistam em alegar que a homossexualidade é algo “anti-natural”, o fato é que os verdadeiros anti-naturais são eles, que tentam impedir a Humanidade de fazer a coisa mais natural que existe: andar para a frente. E vale destacar que, depois que Crivella anunciou que mandaria recolher a HQ dos Vingadores, esta rapidamente se esgotou – e o motivo é muito simples: como falei anteriormente, as pessoas se interessam por obras que foram censuradas. Ou seja: se o objetivo era impedir que alguém tivesse acesso à tal HQ, o tiro saiu pela culatra.
Para completar, é preciso aplaudir a ação nobre do youtuber Felipe Neto, que, indignado com a censura imposta por Crivella, comprou 14 mil livros e quadrinhos que estavam disponíveis na Bienal e que giravam em torno da temática LGBT para distribui-los de graça para o público presente no evento. Não é todo milionário que se importa com uma pausa a ponto de tomar uma atitude como esta, então… palmas para Felipe Neto. (Há quem vá acusá-lo de fazer isto só para “chamar atenção”, mas considerando que nós vivemos no país que mais mata LGBTs no mundo inteiro, acho que investir centenas de milhares de reais em uma ação deste tipo é, no mínimo, louvável.)
Assim, o mais importante é se posicionar contra a censura imposta por Crivella, denunciá-la pesadamente tanto nas redes sociais quanto fora delas e valorizar toda e qualquer boa ação que ainda possa ser praticada. Os intolerantes podem fazer o maior estardalhaço do mundo, mas o máximo que eles conseguirão é ser lembrados como parte de um passado infeliz. Pois não se enganem: a cultura, a diversidade e o amor são infinitamente maiores do que pessoas como Crivella jamais serão.