Furiosa: Uma Saga Mad Max é um exemplo raro de uma prequel que funciona de forma praticamente impecável e que resiste às armadilhas mais comuns das pré-continuações. Retornando ao passado da franquia criada por George Miller a fim de descobrir detalhes até então inéditos sobre um universo que julgávamos já conhecer muito bem, este é um filme que se mantém fiel às marcas registradas da série, mas ao mesmo tempo aproveita para expandi-la e renová-la ao explorar caminhos novos e ambições/propostas diferentes: se Estrada da Fúria partia de uma base simplíssima (sua sinopse se resumia a: os heróis têm de ir do ponto A ao B) a fim de usá-la como pretexto para um exercício de estilo e gênero (se revelando, no processo, uma obra-prima do Cinema de ação), Furiosa se apresenta bem mais dedicado à criação de uma narrativa consideravelmente elaborada, como um conto relido por um narrador, aproximando-se muito mais neste sentido de um outro trabalho recente de George Miller, o ótimo Era uma Vez um Gênio, do que de seu antecessor.
Escrito pelo próprio Miller e por Nico Lathouris (que estreou como roteirista justamente em Estrada da Fúria), Furiosa é uma obra que, desde o princípio, busca chamar a atenção para o fato de que uma história será contada nos próximos 148 minutos, adotando, para isso, recursos surpreendentemente clássicos, como a estruturação da trama em cinco capítulos e uma narração em off que surge quase num tom de “era uma vez…” e que chega até a pôr em dúvida certo aspecto da história (que prefiro guardar a fim de evitar spoilers) sob a alegação de que “é difícil precisar exatamente o que aconteceu, pois uns dizem que ocorreu de maneira X e outros, de forma Y”. O objetivo de George Miller, ao adotar esta abordagem, é claro: se o anterior promovia uma desconstrução do arquétipo do brucutu de ação, esta prequel claramente busca construir um mito em torno de Furiosa, posicionando sua figura como uma lenda que se constituiu após uma longa epopeia – e, com isso, acompanhamos toda sua trajetória desde seu sequestro, ainda criança, até o ápice de sua luta contra seu primeiro arqui-inimigo, o maníaco Dementus.
Neste processo, é impressionante ver os esforços de George Miller e sua equipe em expandir o mundo a que fomos apresentados em Estrada da Fúria, tornando-o bem mais amplo e diversificado do que poderíamos supôr: estabelecendo com cuidado as diferenças entre cada ambiente visitado pela história, o cineasta e o diretor de arte Colin Gibson conferem personalidade, cultura e funcionamento próprios a cada cidade/vilarejo, desde a Terra das Muitas Mães (que surge como um paraíso no meio de uma floresta e que conta com plantações e racionamento de água explícitos, à mostra) até a Vila da Gasolina e a Fazenda da Bala (com a primeira trazendo várias torres que remetem a uma refinaria de petróleo e a segunda, parecendo inflamável a ponto de explodir assim que alguém tocar numa parede). Assim, Miller constrói todo um ideário, que sugere sociedades radicalmente distintas, através mais de imagens e menos de diálogos que apenas mastigam o que já vemos na tela – e é fascinante, também, a criatividade da figurinista Jenny Beavan ao refletir as tradições de cada grupo em suas vestimentas: as mães de Furiosa, que aqui usam roupas mais finas, ali adotam um traje tático cujo capacete é feito dos restos de um esqueleto, ao passo que Dementus parece pegar os primeiros itens surrados que lhe aparecem para compor um visual meio… viking motoqueiro? (Ah, sim: isso enquanto pilota uma biga com motos no lugar de cavalos.)
Interessante ao preencher lacunas não só do passado da personagem-título, mas de toda a civilização da Cidadela de Immortan Joe, Furiosa é bem-sucedido ao incluir pequenas referências ao histórico da franquia sem que estas soem gratuitas e/ou como mero fan service, divertindo-se ao trazer uma ponta rápida de certo personagem familiar (vocês o reconhecerão) e ao brincar com os arquétipos já consolidados da série – e é curioso perceber como o personagem de Tom Burke, estabelecido como melhor amigo de Furiosa (e uma espécie de “âncora” entre ela e o que sobrou do mundo), apresenta pequenos traços/detalhes que terminam por convertê-lo numa versão menos caladona e mais amigável do Max Rockatansky que Mel Gibson viveu em A Caçada Continua, com direito até mesmo a uma ombreira e uma pistola de cano duplo idênticas às que o herói usava naquela produção.
Aliás, algo que acho interessante na dinâmica do universo de Mad Max é que várias situações, que outros diretores tenderiam a retratar como “sub-ações” (ou “missões secundárias”) a serem rapidamente resolvidas dentro de uma ação maior (como, por exemplo, transportar gasolina de uma cidade a outra), são tratadas por Miller como eventos perigosos e/ou grandiosos que, por si só, merecem um tempo de tela considerável – e toda a perseguição da mãe de Furiosa atrás dos sequestradores da filha, em especial, é uma ação que a maioria dos cineastas provavelmente encobriria como algo “menor” (até por já sabermos o resultado daquilo) e que Miller desenvolve ao longo de vários minutos a fim de fazer jus à dificuldade dos esforços da personagem ali. São decisões que funcionam por reforçarem a hostilidade de um mundo que, devastado e carente de recursos a ponto de obrigar seus habitantes a literalmente lutarem para sobreviver, transforma qualquer acontecimento minúsculo numa tarefa que exige os esforços de uma missão principal – e o perigo exalado por aquele universo é tão constante que o prenúncio para uma sequência de ação pode ser uma imagem de um cachorro carregando, na boca, um pé humano decepado.
Por falar em sequências de ação, é claro que estas representam um dos aspectos mais esperados em um filme da saga Mad Max, sendo um alívio, portanto, que os tiroteios, trocas de socos e, principalmente, perseguições que acontecem em Furiosa façam jus às dos exemplares anteriores. Conferindo ritmo alucinante e tensão constante a estes embates (a trilha sonora de Tom Holkenborg, por sinal, tem um papel fundamental nisso), George Miller coordena uma ação complexa, que envolve uma série de elementos distintos que se misturam e se integram de forma insana, sem permitir que estes se embaralhem a ponto de tornarem-se visualmente confusos ou ininteligíveis, mantendo a mise-en-scène sempre sob controle e rodando estas cenas através de planos abertos, gerais e conjuntos que ajudam a situar cuidadosamente em quais pontos do cenário estão os personagens (e os veículos), quais suas posições em relação uns aos outros, para onde se direcionam e quais as ações específicas de cada um – e, em certos instantes, Miller e o diretor de fotografia Simon Duggan registram o que ocorre em pontos diferentes de uma única batalha através de planos longuíssimos nos quais a câmera “passeia” (de modo simultaneamente suave e dinâmico) por cantos distintos de um mesmo espaço geográfico.
O mais impressionante, contudo, é que o filme consegue pôr em prática esta estratégia sem sacrificar a energia e a vitalidade das sequências como um todo – e a montadora Margaret Sixel (esposa de George Miller) encontra uma alternância perfeita entre as ocasiões em que os cortes são mais rápidos e os momentos em que a melhor decisão é deixar o plano se prolongar mais, cadenciando bem o ritmo de cada momento da ação. Além disso, é divertido ver Miller desafiar a percepção que se formou nos últimos anos de que qualquer filme que priorize efeitos práticos torna-se necessariamente bom e qualquer um que mergulhe mais na computação gráfica é automaticamente ruim – e, se aqui e ali os carros e caminhões criados digitalmente parecem sem peso, isso é mais do que compensado pela dinâmica inteira das cenas às quais são submetidos, que exploram as possibilidades da computação gráfica a fim de alcançar resultados que somente os efeitos práticos talvez não dessem conta (como aquelas motos/parapentes que perseguem o caminhão dos heróis, numa sequência que culmina numa “arma-surpresa” na traseira do veículo que… uau).
Mas não há como discutir Furiosa sem mencionar… a própria, que é interpretada por duas atrizes absolutamente expressivas: a primeira é Alyla Browne, que vive a protagonista ainda criança e que talvez seja a maior revelação do longa, já que ancora a narrativa por um bom tempo (inclusive, o filme a mantém em tela por muito mais tempo do que eu imaginava) e confere à pequena Furiosa o vigor e a intensidade que esperaríamos da heroína, estabelecendo uma “ponte” coerente com a versão crescida que vem mais tarde – e é de se admirar a eficácia do casting ao selecionar uma criança e uma adulta tão fisicamente semelhantes. Já Anya Taylor-Joy faz um belíssimo trabalho ao expressar, através de seu olhar marcante, o temor da personagem diante do mundo que a cerca apenas para substitui-lo gradualmente por um ódio e uma veemência que vão escalonando até atingirem o ápice no clímax. Ainda assim, o momento em que realmente fui conquistado pelo trabalho de Taylor-Joy vem no instante em que Furiosa enfim surge pronta para o combate e recita a frase “I need a vehicle” com uma voz assombrosamente idêntica à de Charlize Theron, atropelando qualquer diferença que poderia haver entre as duas atrizes. (Aliás, outro que faz uma “ponte” eficiente é Lachy Hulme, que compõe Immortan Joe com uma voz mais “limpa” que a versão de Hugh Keays-Byrnee em Estrada da Fúria, como se seu pulmão e cordas vocais ainda estivessem “menos destruídas” do que depois.)
Para completar, Chris Hemsworth (que, não custa lembrar, é australiano) parece ter nascido para viver um vilão da série Mad Max. Com nariz postiço, uma aparência cartunesca e um vocabulário que tenta parecer rebuscado ainda que pouco articulado, Dementus é um sujeito absurdo como tendem a ser os vilões da franquia, já que o mundo e, principalmente, qualquer senso de moda e de ridículo já foram embora há muito tempo – e, assim, os antagonistas da saga sentem-se livres para comporem seus visuais da forma mais espalhafatosa possível, sem medo do julgamento alheio. Além disso, Hemsworth encontra o equilíbrio perfeito ao posicionar Dementus como um indivíduo patético e intimidador na mesma medida: ao mesmo tempo em que rimos de sua ignorância e/ou do absurdo de suas falas (como, por exemplo, ao decretar que Furiosa o irritou o suficiente para despertar nele o “Dark Dementus”), também tememos pelo que será capaz de fazer e pelo alcance de sua violência – e que o filme consiga fazer os dois ao mesmo tempo (às vezes até na mesma cena), sem que um fragilize o outro, é um verdadeiro milagre.
Assim, Furiosa se consolida como uma prequel que enriquece o capítulo anterior a ponto de terminar deixando no espectador a vontade de revê-lo imediatamente a fim de revisar seus eventos sob a luz dos que ocorrem aqui. E, de agora em diante, será impossível voltar a conferir Estrada da Fúria sem valorizar ainda mais os esforços de Furiosa naquela obra, já que, por mais que já conheçamos seu destino, esta prequel é hábil ao levar o público a torcer pela personagem como se temesse sua perda a qualquer momento. Se isso não é um indicativo do sucesso do longa, não sei o que mais seria.
E se Mad Max: Estrada da Fúria foi um dos melhores filmes de 2015, Furiosa: Uma Saga Mad Max é, desde já, um dos grandes lançamentos de 2024. Que George Miller viva mais 150 anos e continue a nos presentear com sua imaginação deliciosamente insana.
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Obs.: meus textos sobre Mad Max, Mad Max: A Caçada Continua, Mad Max Além da Cúpula do Trovão e Mad Max: Estrada da Fúria.
Obs. 2: para interpretar o “warboy” criança, George Miller chamou o pequeno Quaden Bayles, um menino com nanismo que talvez vocês conheçam porque, há alguns anos, ele viralizou em um vídeo de partir o coração no qual chorava em função do bullying que sofria na escola. Que Miller o tenha convidado para participar do filme, ainda que num papel pequeno, é um gesto que mexe muito comigo, de verdade. Para saber mais, clique aqui.
Ah, sim: e assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: