A primeira coisa que vemos e ouvimos em Marte Um é a imagem turva de um céu estrelado à noite ao som de fogos e gritos dispersos que comemoram a eleição recém-confirmada de Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil. Só de abrir a projeção com isso, Gabriel Martins já cria no espectador a expectativa de que a narrativa que se seguirá nas quase duas horas seguintes será uma narrativa explicitamente política e frontalmente combativa. E a surpresa, no entanto, é que ao longo dos 115 minutos de Marte Um, a palavra “Bolsonaro” nunca mais é ouvida (ou pelo menos não que eu me lembre, a não ser que seja por um sussurro aqui e outro ali): a gente vê uma professora comentar que a eleição do Bolsonaro pode representar um retrocesso para a crise carcerária no Brasil, a gente vê dois porteiros assistirem à posse do miliciano do Planalto na tevê sem reagirem muito ao que viam… e meio que só.
Isso pode gerar no espectador uma impressão terrivelmente equivocada de que Marte Um não é um filme político, ou que utiliza a política para fins apenas contextuais. Mas é aí que reside a beleza deste trabalho de Gabriel Martins: não é necessário se apresentar e se portar claramente como discurso político contundente para sê-lo.
Pois se tem uma coisa que Marte Um consegue ser muito bem, é um retrato preciso do que é o Brasil de Bolsonaro. Por mais que a história em si se passe numa periferia de Contagem, em Minas Gerais (bem longe da Explanada dos Três Poderes em Brasília), Gabriel Martins cria aqui uma obra que, do início ao fim, transpira de forma visceral todo o sentimento de desalento, de desesperança e mal-estar que passou a tomar conta do Brasil com a chegada do governo Bolsonaro – um sentimento que eu espero que termine e se dissipe de uma vez por todas agora em Outubro deste ano.
Novo longa da produtora Filmes de Plástico, que foi criada no município de Contagem e agora está sediada em Belo Horizonte e que vem se destacando nos últimos anos por filmes como Temporada e A Felicidade das Coisas (obras não só excelentes, mas que se dedicam menos a tramas elaboradas e mais a retratar e a passear pelo dia a dia de pessoas comuns naquela cidade), Marte Um é dirigido e escrito pelo Gabriel Martins, que tinha co-dirigido há alguns anos o ótimo No Coração do Mundo, também da Filmes de Plástico. Aqui, o roteiro acompanha uma família de classe média baixa composta pelo pai Wellington que se recupera do alcoolismo e que há décadas trabalha como porteiro de um condomínio rico, pela mãe Tércia que é vítima de um acontecimento que a deixa traumatizada e acreditando que tudo ao seu redor atrai azar e energias negativas para ela, pela filha mais velha Eunice que começa a namorar uma outra garota e resolve ir morar com ela em outro lugar (fora de casa) e pelo filho mais novo Deivinho que, embora incentivado pelo pai a tornar-se um craque do futebol, quer mesmo é largar o esporte e ir se dedicar a astrofísica, sonhando, inclusive, em participar no futuro da missão que dá título ao filme e que consistirá na colonização de Marte.
Em outras palavras: Marte Um é uma obra que, mesmo sem citar nominalmente os fatores políticos, econômicos e sociais que lançaram o Brasil neste pesadelo que vem vivendo nos últimos anos, se dedica a girar em torno de alguns dos tipos de pessoas que mais sofreram – e vem sofrendo – com o governo Bolsonaro e com a gestão econômica de Paulo Guedes. Pessoas negras, homossexuais e que vivem em situação de total insegurança financeira, podendo despencar da classe média baixa para a absoluta miséria de um dia para o outro.
No entanto, são pessoas que, nem por isso, baixam a cabeça e deixam de sonhar grande. Mesmo que a realidade socioeconômica do país – e o próprio filme em si – jamais deem à família Martins qualquer indício de que as coisas ficarão melhores e de que o bem virá, isso não leva aqueles quatro indivíduos a se resignarem à condição de “vencidos” – ao contrário: eles nunca, em momento algum, deixam de exercer o direito básico de todo ser humano que é o de sentir esperança. Não de esperar as coisas ficarem melhores, mas de esperançar que elas ficarão. A situação econômica daquela família é tão dura, de maneiras diferentes, que o desespero leva o pai Wellington a forçar o filho Deivinho a treinar para se tornar um craque do futebol (mesmo que o garoto não queira), mas isso não impede, em momento algum, o Deivinho de ter o sonho e a ambição de se tornar um astrofísico, sair daquele mundinho e alcançar ares impossíveis – no caso, o planeta Marte.
Um sonho que, por mais absurdo e distante que pareça, é enxergado pelo filme com uma complacência muito tocante: quando Deivinho finalmente tem a oportunidade e a segurança para contar a alguém o seu sonho de ir para Marte, ele obtém como resposta da irmã Eunice um simples e sincero “É lindo”.
Esta doçura e singeleza do Marte Um é algo que se manifesta em cada fotograma dos 115 minutos de projeção: embora seja uma história que lida com personagens em situações pavorosas, que sonham em melhorar de vida e que reagem à política socioeconômica do país que os cerca, ainda assim é um filme que se recusa a explorar estes dramas de forma artificial ou esquemática. Na verdade, é um longa muito mais interessado nas sutilezas e nas nuances que compõem os sentimentos dos personagens do que nos sentimentos em seu quadro geral – e, neste aspecto, Gabriel Martins faz muito bom uso de toda a abordagem visual, em termos de decupagem mesmo, que os projetos anteriores da Filmes de Plástico se tradicionalizaram em compor: a câmera acompanha o dia a dia dos personagens de forma relativamente passiva (a ida no boteco, a ida ao trabalho, a ida na reunião dos alcóolicos anônimos, a ida a um website no Google, etc), deixando o espectador contemplar aquelas pequenas ações triviais como um… espectador.
Ao mesmo tempo, a maneira com que Martins explora o crescimento das tensões familiares ou sociais provém menos de verborragias óbvias e mais, por exemplo, de planos-detalhe que mostram as mãos de duas meninas se segurando e os olhares dos pais percebendo que a filha é lésbica e reagindo a esta descoberta. Ou então de closes que se mantém nos rostos dos personagens ao longo de cenas inteiras, sem registrar as expressões de quaisquer outros atores ali presentes – como ocorre com Tércia no instante em que ela conta à família algo que a traumatizou naquele dia (e que é uma cena em que tanto Gabriel Martins quanto Rejane Faria, que interpreta Tércia, transformam num dos instantes mais eficientes do filme, porque é um daqueles dramas que a gente não sabe explicar muito bem o que é nem por que está sentindo, é uma dor muito real e muito palpável).
E, por fim, a coisa que mais me encanta em Marte Um é que, além do filme ter a eficácia necessária para ser político sem se explicitar como tal (vendendo a sua posição através das sutilezas), é também um filme maduro o suficiente para não resolver os conflitos e as dores dos personagens através de subterfúgios simples, ilusórios ou mentirosos. É muito possível entender o desfecho de Marte Um como “otimista”, mas não sei se concordo muito com isso porque. A história daquela família (sem spoilers!) não termina com uma resolução para os seus problemas; muitos dos sonhos daqueles indivíduos continuam enterrados ou então tornam-se ainda mais distantes do que já eram. Porque, na vida real, os problemas não somem assim, tão facilmente, só para criar um desfecho bonitinho a uma narrativa.
A diferença é que, com isso, o pouco que sobrou à família Martins é… agarrar-se ao pouco que restou para sobreviver e seguir em frente, sem deixar de esperançar. Afinal, o país já tirou praticamente tudo e todas as esperanças daquela família; a única coisa que não pode – e não tem como – tirar é… o sonho em alcançar Marte.
Não há palavra melhor para definir Marte Um do que aquela dita pela irmã Eunice ao ouvir Deivinho contar para ela o seu sonho de vida:
“Lindo”.