Qualquer um que já tenha batido cinco minutos de papo sobre super-heróis de quadrinhos comigo sabe que, embora eu não chegue perto de uma revista da Marvel ou da DC há um bom tempo, o Superman de Richard Donner é um dos filmes da minha vida. Lançado em 1978, no alvorecer dos blockbusters pós-Tubarão e Star Wars, o longa que preconizou o então desconhecido Christopher Reeve como a versão definitiva do personagem não só representou uma revolução técnica no uso dos efeitos visuais (“Você vai acreditar que um homem pode voar”, anunciavam à época), como estabeleceu as bases para tudo que veríamos nas décadas seguintes no universo das adaptações de super-heróis de HQs, do Homem-Aranha de Sam Raimi ao Batman Begins de Christopher Nolan. Não é só um filme efetivo, mas também… mágico, encantador, romântico de um jeito que seus colegas de gênero hoje já não conseguem ser.
E há, no centro disso tudo, o inesquecível Christopher Reeve, um sujeito com uma história de vida tão absurda que fica impossível não criar um vínculo afetivo ainda maior para com sua persona. Alçado ao status de megaestrela após o sucesso estrondoso de Superman, Reeve tornou-se um rosto inconfundível, um ícone da cultura pop até que, em 1995, um trágico acidente a cavalo mudou sua vida para sempre: por conta de uma fratura de um centímetro na coluna, ela passou o resto de seus dias preso a uma cadeira de rodas, completamente paralisado do pescoço para baixo. No entanto, Reeve não se deu por vencido. Nos nove anos que sucederam a fatalidade, o ator dedicou cada dia que lhe restava a investir pesadamente em projetos e pesquisas que buscassem melhorar a condição de pessoas com paralisia. Reeve se foi, em 2004, como um Super-Homem da vida real.
Não é surpresa, portanto, que eu tenha ficado com os olhos marejados já nos primeiros minutos de Super/Man, documentário que reconta a vida e a obra de Christopher Reeve. Na verdade, o trabalho dos diretores Ian Bonhôte e Peter Ettedgui é tão eficaz, em sua tarefa de envolver o espectador emocionalmente, que me faz querer ignorar até mesmo alguns probleminhas que possam haver aqui e ali.
Buscando ser o mais abrangente possível no retrato pessoal e profissional de seu biografado, Super/Man se dispõe a mergulhar em cada pormenor da vida de Reeve: seus gostos pessoais, suas influências, suas ambições e objetivos ao embarcar na carreira de ator e, não menos importante, as virtudes e dificuldades de suas relações familiares – e admito que não sabia da relação conturbada que ele tinha com o pai, cuja presença já intimidava a ponto de quase frear o filho em sua jornada. Da mesma forma, o documentário revela detalhes sobre o dia a dia de Reeve que normalmente passariam despercebidos, como toda a dificuldade logística envolvida em transportá-lo até a cerimônia do Oscar e, claro, a importância que aquela célebre aparição teve para ele a nível pessoal. Além disso, por mais que eu soubesse que Reeve vinha recobrando alguns dos movimentos em seus anos finais (ele já conseguia mexer um pouco dos dedos, por exemplo), confesso que não imaginava a extensão deste avanço, já que, em dado momento, ele surge fazendo movimentos com as pernas em uma piscina de hidroginástica que me deixaram impressionado.
Ao mesmo tempo, a famosa amizade entre Reeve e Robin Williams (que estudaram na mesma faculdade) se torna um aspecto central do longa, já que o tempo todo os entrevistados lembram de como o comediante esteve presente em basicamente todas as etapas da vida do biografado (e as imagens de arquivo resgatam fotos e vídeos caseiros de ambos conversando ao longo de décadas). Além de toda a ajuda que Williams prestou a Reeve (arranjando-lhe uma van especial para levá-lo à cerimônia do Oscar e participando ativamente de campanhas para a instituição do amigo), eles continuaram a aparecer em todas as festas de aniversário que faziam, viraram praticamente membros das famílias um do outro (Reeve, por exemplo, era padrinho do filho de Williams) e, quando passavam por um mau momento e precisavam de alguém com quem conversar, eles logo se telefonavam – e a frase que mais mexeu comigo em todo o documentário veio de Glenn Close ao dizer: “Eu realmente acredito que, se Chris ainda estivesse aqui, Robin também estaria”.
Por outro lado, é difícil negar que, de um ponto de vista de forma e estilo, não há nada de particularmente brilhante ou inventivo na abordagem de Ian Bonhôte e Peter Ettedgui, que se limitam a uma dinâmica meio “quadradona” que se sentiria bem mais à vontade na tevê do que na telona do cinema – e a trilha de Ilan Eshkeri, em especial, me soa óbvia demais em seus esforços de manipular o espectador, buscando provocar riso, tensão e choro de modo pouco orgânico. Ainda assim, o grande problema de Super/Man reside mesmo em sua estrutura: em vez de seguir uma cronologia linear, que vai relembrando a trajetória de Christopher Reeve numa lógica crescente, os realizadores preferem criar um paralelismo que vai alternando entre o começo de carreira do biografado (nos anos 1970) e tudo que este viveu depois do acidente (de 1995 em diante). Ok, trata-se de uma forma de acentuar o contraste entre o mito e o ser humano por trás deste – só que, ironicamente, ao fazer isso o filme corta um pouco do impacto deste mesmo contraste, já que a escalada que leva do galã aparentemente indestrutível até um sujeito paralisado numa cadeira de rodas é gasta bem rapidamente logo nos primeiros cinco minutos de filme.
De todo modo, ao menos isso é compensado com a elegância (pouco sutil, mas e daí?) com que o montador Otto Burnham usa trechos dos longas anteriores para intercalar certas passagens reais do biografado: quando Reeve se apresenta na Convenção Democrata e fala sobre a importância dos direitos dos deficientes físicos, vemos inserts de Superman discursando na ONU em Superman IV (para alguma coisa aquele filme maldito tinha que prestar); quando os entrevistados falam sobre a crise interna de Reeve ao querer sair da sombra do Homem de Aço, surge a divertida cena de Superman III em que Clark Kent saía no braço com uma versão malvada de si próprio; e, quando os depoimentos relembram a paixão que Christopher e Dana sentiram nos primeiros anos de relacionamento, somos presenteados com uma visão do inesquecível voo romântico de Superman e Lois Lane no filme de Richard Donner.
Mas o que mais me surpreendeu em Super/Man, contudo, foi sua disposição em falar não só das virtudes, mas dos problemas que Christopher Reeve eventualmente pudesse ter – afinal, ele era um ser humano falho como qualquer outro. Além de expor uma certa insatisfação de Reeve em relação ao próprio papel de Superman que o imortalizou (ele sentia que precisava angariar papeis “de prestígio” para, então, ser valorizado como ator, já que suas aparições como super-herói eram vistas como algo “popularesco” demais), o documentário não ignora o fato de que, ao longo de sua carreira, o biografado entrou numa decadência que logo o forçou a participar de telefilmes duvidosos apenas para pagar as contas – e, da mesma forma, o longa não finge que Superman III e IV não foram fiascos colossais (sobre o quarto capítulo, Reeve considerou “uma catástrofe do início ao fim”).
Não menos importante é a decisão do filme de reconhecer que, até mesmo como símbolo de ativismo, Reeve era alvo de controvérsias, chegando a resgatar o horroroso comercial em que o ator saía caminhando através de dublês e efeitos visuais – algo que gerou acusações (pertinentes) de que Reeve queria somente se aproveitar de uma causa nobre para sair de sua própria cadeira, buscando por uma “cura” sem perceber que a paralisia, por si só, não é um “defeito”. É justamente ao relembrar este detalhe que Super/Man tem a chance de mostrar como o protagonista amadureceu com aquelas críticas – e, se isso ocorreu, foi graças especialmente à sua esposa, Dana Reeve, que foi instrumental ao convencer o marido de que aquelas acusações… bem, tinham razão. Aliás, um dos maiores méritos do documentário reside em elevar a figura de Dana a um status tão fundamental quanto o de Christopher, fazendo questão de relembrar (através de depoimentos e imagens de arquivo) sua personalidade, suas vontades e sua influência – e não é à toa que, mesmo depois de retratar (spoiler?) a morte de Christopher, o filme dedica um bom tempo à tragédia de Dana, que faleceu aos 44 anos de câncer no pulmão.
Com isso, Super/Man leva o espectador a terminar a projeção sabendo exatamente quem era o homem por baixo do collant azul e da capa vermelha. Sim, eu já imaginava que fosse me emocionar tremendamente com a história de Christopher Reeve em função do acidente que o vitimou, mas se tinha uma coisa que admito que não esperava – por mais óbvio que possa parecer – era sentir profundamente o impacto de sua partida mesmo 20 anos depois de ter ocorrido.
É, em suma, o melhor filme de super-herói de 2024.
Visto no Festival do Rio 2024.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: