Os brinquedos de Toy Story são alguns dos meus amigos mais antigos – e sim, minha relação com eles é tão carinhosa que me sinto à vontade para chamá-los de amigos. Isto não quer dizer, no entanto, que a minha adoração pelos três filmes (que considero três obras-primas) se deva somente à memória afetiva: o primeiro, mesmo representando uma das revoluções formais mais importantes que Hollywood experimentou nos últimos trinta anos (afinal, John Lasseter e sua equipe praticamente reinventaram o conceito de “animação” ao lançarem o longa em 1995), resistiu à passagem do tempo graças mesmo ao carisma de seus personagens e à sensibilidade de sua narrativa; o segundo expandiu o universo apresentado anteriormente com muito bom humor, peso dramático e imaginação, resultando em uma continuação simplesmente soberba; e o terceiro encerrou a trilogia de maneira magistral, fazendo o público se emocionar com o crescimento de Andy, com o medo dos brinquedos de serem abandonados e, claro, com aquele final.
O que nos traz a algumas perguntas inevitáveis: depois de fazer o mundo inteiro chorar horrores com o final daquela história, a Pixar precisava mesmo fazer um quarto filme? Ainda há algo que justifique mais um Toy Story?
A resposta: sim, há.
Marcando a estreia de Josh Cooley na direção (que trabalhou nos storyboards de vários projetos da Pixar e foi indicado ao Oscar pelo roteiro de Divertida Mente), Toy Story 4 começa com uma cena que, situada nove anos no passado, esclarece o motivo da pastora Betty ter sumido no filme anterior. A partir daí, um salto temporal nos traz ao presente e vemos os brinquedos já acostumados à rotina da pequena Bonnie, que, em seu primeiro dia no jardim de infância, recolhe uns restos de lixo e os emprega para criar um novo boneco: o Garfinho, que, sem nunca se identificar como brinquedo, tenta repetidamente escapar das mãos da menina – algo que Woody se esforça ao máximo para impedir, já que, para ele, a razão do lixo/brinquedo existir é uma só: deixar sua dona feliz. E a tarefa de preservar o Garfinho torna-se ainda mais difícil para o caubói depois que Bonnie e seus pais decidem sair de férias, parando eventualmente num hotel de beira de estrada que fica entre um antiquário e um parque de diversões. É no meio destes dois locais que Woody acaba reencontrando ninguém menos que… Betty (e suas três ovelhas, claro).
A primeira coisa que salta aos olhos em Toy Story 4 é a qualidade técnica da animação em si – e sei que estarei soando redundante, já que rasguei elogios similares em basicamente todos os textos que escrevi sobre as produções da Pixar, mas o resultado que os animadores alcançaram aqui é tão impressionante que me sinto obrigado a destacá-los mais uma vez. Logo na sequência que abre a projeção, quando os brinquedos resgatam um carrinho arrastado por uma correnteza no meio de uma noite chuvosa, já ficamos embasbacados com a quantidade de detalhes presentes na cena, desde as muitas gotas d’água que pingam no corpo de Woody até as pequenas sombras projetadas no pano da roupa do boneco. Isto porque nem considerei as texturas dos personagens (que variam entre plástico, pelúcia e cerâmica e sempre surgem convincentes), as sujeiras arrastadas pela chuva, as etiquetas nos torsos de alguns bichinhos e os pequenos detalhes no corpo de Woody, como fiapos, relevos provocados por costuras e até mesmo partículas de poeira – e quando parece que a animação não tem mais como surpreender, aparece um gato que (juro!) parece live-action. Já o design sonoro se atém a pequenos ruídos que conferem textura aos brinquedos (como aqueles emitidos quando alguém encosta na cerâmica que compõe o corpo de Betty), ao passo que a trilha de Randy Newman nada mais é do que um medley de todas as melodias que o compositor já havia criado nos três longas anteriores (não estou reclamando, não; ouvir estas composições de novo é sempre um prazer).
Mas são as mudanças trazidas por Toy Story 4 que realmente o tornam especial – e uma das maiores é a forte ênfase que o filme dá às mulheres presentes na história, prosseguindo com a proposta de empoderamento que a Pixar já havia abraçado em Os Incríveis 2. Isto fica claro ainda no primeiro ato, quando Woody recebe ordens de Dolly (uma boneca que, por conhecer Bonnie há mais tempo, tem mais motivos para liderar aqueles brinquedos) e tem sua estrelinha de xerife removida pela dona, que logo a repõe em Jessie (e a transforma, portanto, na nova figura de autoridade). Além disso, quando comparamos a participação feminina deste filme com a do primeiro, que limitava-se somente a Betty e ao seu papel de mocinha indefesa, percebemos o quanto as coisas evoluíram de lá para cá. Betty que, por sinal, mudou radicalmente desde que saiu da casa de Andy: se antes era uma personagem quase irrelevante, agora é uma mulher forte, que conta com uma personalidade bem mais interessante (espontânea, bem humorada e cheia de atitude), que se destaca na ação a ponto de dar ordens em Woody e que – o mais importante – encontrou um estilo de vida que independe da adoração de uma criança, permitindo que ela finalmente se sinta livre.
Aliás, os personagens introduzidos neste Toy Story 4 são um atrativo à parte, sendo curioso que eles não só sejam carismáticos como ainda apresentem conflitos internos que tendem a torná-los mais complexos. O Garfinho, por exemplo, vive um dilema identitário fascinante: embora designado para agir como um brinquedo, ele nunca se identifica como tal, reconhecendo-se como lixo e sendo frequentemente induzido a ações autodestrutivas (como se jogar pela janela) em função disso. Ao mesmo tempo, a boneca Gabby Gabby assume o papel de principal antagonista da história, porém está longe de ser uma vilã como Mineiro ou Lotso, demonstrando um caráter especial ao reconhecer, no terceiro ato, o fracasso de seus planos. Já as pelúcias Ducky e Bunny (dubladas por Keegan-Michael Key e Jordan Peele, uma dupla reconhecidamente cômica e que faz um trabalho simplesmente hilário aqui) revelam-se divertidas e imprevisíveis sempre que se encontram em cena, ao passo que Duke Caboom (vivido de maneira fabulosa por Keanu Reeves, que confere um tom exageradamente dramático a todas as suas falas – e que faz rir justamente por isso) luta para manter a pose viril mesmo tendo que lidar com um trauma do passado, o que é notável.
Por outro lado, os personagens antigos já não têm a mesma sorte: se Jessie, Slinky, Rex, Sr. e Sra. Cabeça-de-Batata, o Porquinho e cia são reduzidos a meros figurantes de luxo, Buzz Lightyear é transformado num bobão que nem parece ter passado por toda uma evolução nos filmes anteriores, limitando-se a uma única piada que, confesso, não me fez rir em momento algum. Aliás, os problemas de Toy Story 4 não param por aí (o que é uma pena, já que a trilogia que o antecedeu é consistente em sua magnitude): o roteiro de Andrew Stanton (Procurando Nemo e Wall-E) e da estreante Stephany Folsom muitas vezes não parece saber aonde ir, fazendo a narrativa soar pontualmente perdida e repetitiva – isto sem contar algumas conveniências ocasionais, como um personagem que coincidentemente se depara com outro no lugar mais improvável do mundo. Para completar, algumas piadinhas se esforçam demais para arrancar o riso do espectador, o que, por sorte, é contrabalanceado pelo desfecho satisfatório de algumas delas (como aquela que enfoca Buzz, Ducky e Bunny pensando em como tirar uma chave das mãos de uma senhora).
Mas o desfecho mais importante é o de Woody, que encerra um arco iniciado há 24 anos. O fim desta jornada, inclusive, é tão drástico que chegou a me incomodar quando assisti ao filme pela primeira vez; ao revisitá-lo, porém, me dei conta de que a solução encontrada para o personagem é… perfeita. Se lá atrás Woody temia que Buzz Lightyear pudesse se tornar o centro das atenções de Andy e, por isso, acabava tomando atitudes extremamente invejosas e egoístas, desta vez o medo de não ser mais o brinquedo favorito de uma criança causa uma reação diferente no caubói. Agora, as coisas não são mais como eram nos tempos de Andy – e é este vácuo que faz Woody perceber que viver à mercê dos outros nem sempre é o ideal e que buscar uma voz própria talvez seja mais justo consigo mesmo. (Não, não estou me referindo à caixinha de som mantida dentro do boneco e que é acionada quando alguém puxa a cordinha em suas costas. E isto, inclusive, é algo que o próprio filme reconhece e usa para criar um simbolismo curioso).
Sim, Woody tem um caráter imenso e seu carinho por Andy sempre foi o centro emocional da franquia, mas este sentimento de dependência em relação a um dono garantiu ao caubói uma vida de paranoia, estresse e instabilidade. Depois de tanto se dedicar a Andy e a Bonnie, finalmente chegou a hora em que Woody pôde encontrar um merecido descanso. E mais: considerando aquilo que acontece no final, não seria absurdo supor que estes brinquedos ainda podem retornar em novas e diferentes aventuras.
Eu gostaria de vê-las.
Gravei dois vídeos sobre o filme: um SEM spoilers (quando minha opinião ainda não tinha mudado para melhor)…
… e outro COM spoilers.