Considerando que não há um dia sequer onde os meios de comunicação social não sejam inundados por um tsunami de xingamentos e ataques baixos assim que se acendem discussões ideológicas envolvendo temas como política, religião e ética (algo que também relatei no texto sobre Expresso do Amanhã), Trumbo – Lista Negra acaba se revelando um filme relevante e que merece ser visto por promover o debate como substituto da agressão verbal de maneira eficaz. Dito isso, é uma pena que uma obra tão valorosa do ponto de vista temático seja sabotada por um roteiro que apela constantemente para diálogos rasos e concepções caricaturais dos personagens – e mesmo que conte com o fabuloso Bryan Cranston no papel principal, a produção ainda é prejudicada por uma direção frágil e pouco inventiva.
Dirigido por Jay Roach (de Austin Powers e Entrando Numa Fria) e escrito por John McNamara com base no livro biográfico de Bruce Alexander Cook, o longa gira em torno do roteirista Dalton Trumbo, que, dono de um talento invejável, se torna vítima do macarthismo e passa anos na cadeia, passando a compor a Lista Negra que trazia diversos nomes relacionados ao entretenimento de Hollywood a serem boicotados por simpatizarem com o Partido Comunista. Ao ser liberto da prisão, Trumbo entrou numa jornada para reconquistar o prestígio em meio a uma indústria/sociedade que refutava os comunistas, o que levou o roteirista a utilizar pseudônimos em seus trabalhos – para se ter ideia, Trumbo “ganhou” dois Oscars em anonimato: um por A Princesa e o Plebeu e outro por Arena Sangrenta.
Inteligente ao evitar o levantamento de bandeiras ideológicas ou opiniões partidárias, Trumbo não visa enaltecer o comunismo e tratá-lo como uma solução para os problemas sociais – na realidade, o principal discurso que a obra procura imprimir afirma que o ideal para que uma sociedade progrida de maneira sadia é debater racionalmente e sem jamais apelar para insultos que só depõem contra a sabedoria daqueles que os proferem. Trata-se de uma película que merece ser conferida principalmente por conta de sua relevância, já que, em tempos onde pessoas são hostilizadas apenas por passarem perto de determinadas manifestações utilizando vestimentas vermelhas e figuras conhecidas são atacadas em momentos íntimos apenas por defenderem publicamente certas ideologias/partidos (algo que ocorre com o próprio Dalton Trumbo ainda nos minutos inicias do longa), é de se admirar que uma produção artística se disponha a promover o debate de ideias sem panfletar – aliás, o próprio roteiro (por mais problemático que seja) é hábil ao questionar a vida cômoda que o protagonista leva, tendo sua riqueza questionada em razão de sua posição como comunista.
Assim, é uma pena que John McNamara se entregue ao maniqueísmo barato e transforme a maior parte dos coadjuvantes em caricaturas com a profundidade de um pires que servem somente como ferramentas a contribuírem para o avanço da jornada do personagem-título e da narrativa. No processo, a colunista Hedda Hopper é caracterizada como uma vilã diabólica e incapaz de realizar quaisquer ações que não possam ser descritas como nefastas ao passo que os executivos dos estúdios cinematográficos se resumem, em sua maioria, a figuras aproveitadoras e oportunistas que repreendem Dalton aqui antes de requisitar seu apoio ali. Como consequência, boa parte dos antagonistas do longa surgem excessivamente cartunescos e vazios; e mesmo quando tenta conferir densidade, por exemplo, à família de Trumbo, o roteiro se entrega a soluções fáceis e o tempo de tela para os conflitos criados soa insatisfatório.
Pra piorar, o desempenho de Jay Roach como diretor é igualmente sintomático: realizando um trabalho que parece mais adequado a uma produção televisiva, o cineasta peca brutalmente ao adotar com frequência planos fechados demais nos rostos dos personagens, numa decisão deselegante e que tende a potencializar a precariedade técnica do longa. E por mais que os figurinos e o design de produção sejam minuciosos e eficazes ao retratar a época onde o filme se passa, a direção de fotografia se mostra aborrecida e pobre ao ponto de utilizar aqui e ali alguns planos rodados com a câmera na mão (e estes não aparentam ter sido feitos com o intuito de acrescentarem à película um tom similar ao dos documentários, já que surgem apenas pontualmente em meio a tantos outros quadros estáticos igualmente infames). Como se não bastasse, Roach ainda se mostra falho e terrivelmente óbvio na condução de determinadas sequências dramáticas, algo que só não constrange mais do que os eventuais zooms lentos que o diretor aplica nos atores sempre que estes proferem algo significativo ou simbólico.
Felizmente, Trumbo é salvo por dois fatores decisivos: seu protagonista e o homem que o interpreta. Indicado ao Oscar por seu desempenho aqui, Bryan Cranston (o Walter “Heisenberg” White da fantástica série Breaking Bad) consegue conferir profundidade ao personagem-título do filme e caracteriza-lo como um sujeito claramente imperfeito, porém capaz de ganhar a admiração do público – e, assim como nas últimas produções que integrou (até em Godzilla), o ator demonstra uma capacidade impressionante de acrescentar energia a detalhes pequenos como risos, tosses e falas gaguejadas. Por sinal, Cranston é hábil ao transformar Dalton Trumbo numa figura poderosa quando se encontra realizando seu ofício, o que faz das sequências que trazem o protagonista datilografando em sua máquina de escrever surpreendentes pelo grau de vivacidade conferido pelo ator. E se Diana Lane se sai bem numa performance serena e humana, Louis C.K. (um dos grandes nomes do humor contemporâneo) cria um indivíduo denso e cujo receio que demonstra quanto à possibilidade de lutar por seus ideais o torna mais vulnerável, ao passo que John Goodman surge como uma presença agradável – como já era de se esperar – num papel que automaticamente remete ao personagem que o mesmo ator viveu em O Artista.
Saindo-se relativamente bem ao investir num desfecho didático, porém eficiente em seus esforços dramáticos (e muito disso se deve, novamente, ao poder das interpretações – não serei mais específico que isso para evitar spoilers), Trumbo é uma obra cujo valor temático a torna inquestionavelmente relevante. É uma pena, no entanto, que isto não seja o suficiente para torná-la verdadeiramente efetiva como produto artístico; e por mais que o trabalho de Bryan Cranston garanta a alegria do espectador, o mesmo não pode ser dito com relação à direção de Jay Roach ou ao roteiro de John McNamara.