Em certo momento de Viva – A Vida é uma Festa, um personagem vira para o protagonista e diz “Espero que você morra logo“. Trata-se de uma frase que, tirada de contexto, obviamente soa como um insulto perigoso numa animação voltada para um público mais jovem, podendo até propagar sentimentos autodestrutivos. Assim, é uma surpresa que essa linha de diálogo específica surja no roteiro de Adrian Molina e Matthew Aldrich como uma legítima declaração de afeto, o que serve para evidenciar a eficácia do novo projeto da Pixar. Mesmo lidando com temas comumente encarados com pesar, Viva – A Vida é uma Festa exibe uma maturidade digna de nota ao abordá-los, encontrando a oportunidade de se divertir com os assuntos que pretende discutir sem jamais cair na irresponsabilidade (o que, convenhamos, é uma proeza e tanto).
Comandado pelo mesmo Lee Unkrich do excepcional Toy Story 3 (contando também com a ajuda de Adrian Molina, que estreia como co-diretor aqui), o filme se passa em Santa Cecília, no México, e acompanha o pequeno Miguel Rivera, que sonha em se tornar um músico mesmo que sua família tenha um repúdio pessoal com essa vocação. Quando chega o Dia dos Mortos mexicano, Miguel descobre que seu falecido tataravô teve ligações diretas com o mundo da Música, o que leva o garoto a uma série de impulsos que incrivelmente o mandam para a terra dos finados. Com isso, Rivera parte numa jornada a fim de conseguir a benção de um familiar já falecido e enfim retornar ao universo dos que ainda vivem.
Já deu para perceber, portanto, que Viva – A Vida é uma Festa faz algo cada vez mais prudente no cenário artístico: abraçar a diversidade e celebrá-la através da inclusão. Assim, em vez de se concentrar mais uma vez no “American Way of Life” que a maioria das obras hollywoodianas enaltecem exaustivamente, o filme permite que o espectador olhe para culturas (no caso, a mexicana) que estão longe de ter a mesma visibilidade, algo extremamente bem-vindo em tempos onde figuras de autoridade insistem em direcionar ódio contra outros povos. E que bom que existe essa possibilidade, pois sair da mesmice e enriquecer o conhecimento através de observações etnográficas é sempre um privilégio – e há também o alívio de constatar que tanto Unkrich quanto a dupla de roteiristas faz um trabalho que realmente funciona como estudo antropológico, oferecendo uma forma diferente de enxergar a morte e mostrando inúmeros componentes de tradições mexicanas sem sucumbir aos estereótipos.
Claro que o fato de abordar uma cultura tão característica faz com que Viva – A Vida é uma Festa passe a depender pesadamente de um estilo estético apurado – algo que felizmente está presente desde a sequência inicial, que conta a história pregressa da família do protagonista usando papeis coloridos tipicamente associados ao que se vê no México. Além disso, o designer de produção Harley Jessup se sai muitíssimo bem tanto ao criar as ruas de Santa Cecília quanto ao (re)imaginar o mundo dos mortos, apostando em cores intensas que vão de encontro com o que costumamos esperar de uma história envolvendo luto e realçam o aspecto lúdico de uma terra que abriga casas empilhadas, arquiteturas que não têm nenhum comprometimento com a Física, esqueletos que obviamente remetem às pinturas corporais do Dia dos Mortos (com direito a “pontas” de figuras conhecidas, como Frida Kahlo) e criaturas aladas que, de tão brilhosas, quase soam como animações 2D. (Aliás, é fundamental elogiar mais uma vez o trabalho dos animadores da Pixar, que dão atenção a detalhes como a textura da pele dos personagens e as folhas que se iluminam sobre uma ponte quando tocadas por quem a atravessa.) Para completar, a trilha sonora do sempre excelente Michael Giacchino (em seu sexto trabalho com o estúdio) acerta ao empregar os instrumentos de corda que fazem parte da tradição musical mexicana.
Beneficiado por um roteiro surpreendentemente adulto que não só toca em temas importantes (como lidar com a morte de maneira menos dolorida e mais otimista) como também inclui reviravoltas chocantes (com direito a uma traição fatal motivada pelo ego e pela ganância), o diretor Lee Unkrich novamente exibe sua capacidade de mexer com os sentimentos do público após levar o mundo às lágrimas com Toy Story 3, alcançando um clímax emocional que certamente fará com que muitos espectadores se identifiquem com a situação retratada na tela. O mais admirável, no entanto, é perceber como Unkrich consegue adicionar toques pontuais de comédia sem subtrair este peso dramático, se permitindo rir, por exemplo, das brincadeiras feitas pelo cão Dante e das maluquices que o morto Héctor acaba estrelando de vez em quando.
Por outro lado, os poucos problemas de Viva – A Vida é uma Festa também fazem parte do roteiro, que, apesar das muitas virtudes, carece de imaginação na hora de construir sua premissa, desenvolver momentos-chave da narrativa e estabelecer o universo onde a trama se situa (e acho pouco provável que quem já assistiu a obras como A Noiva Cadáver ou Festa no Céu se surpreenda com algo aqui; por falar na animação produzida por Guillermo del Toro, este é outro projeto que, além de envolver a cultura mexicana e o universo dos mortos, ainda conta com um protagonista que sonha em se tornar cantor a contragosto de sua família). Por fim, Adrian Molina e Matthew Aldrich utilizam uma fórmula exaustivamente repetida nos filmes da Pixar: aquela que traz um herói saindo de sua zona de conforto e sendo obrigado a reencontrá-la após inevitáveis lições de moral – e até mesmo o jeito como o vilão é vencido depende de conveniências e clichês.
De todo modo, o fato é que Viva – A Vida é uma Festa é mais um grande acerto da Pixar, mantendo-se completamente distante de obras embaraçosas como Carros 2 e O Bom Dinossauro. Contando também com canções originais que se tornam ainda mais poderosas graças às vozes do ótimo elenco (não consigo imaginar Remember Me em português), esta é uma animação que, embora menos inventiva que Divertida Mente, funciona tanto como olhar antropológico quanto como entretenimento, conseguindo emocionar o espectador ao mesmo tempo em que deixa nele a vontade de expandir seu conhecimento.