“Filmes de sobrevivência” existem aos montes e em cenários completamente diferentes. De Náufrago a Gravidade, passando por Na Natureza Selvagem, A Estrada, 127 Horas, As Aventuras de Pi, O Impossível, Até o Fim e tantos outros (citei só os primeiros que me vieram à mente), as narrativas que acompanham um ou dois personagens tendo que resistir às armadilhas de suas próprias jornadas podem ir de situações “menores” (um menino com o braço preso numa pedra; um jovem perdido na floresta; um sujeito que tem que sair de um barco que se afunda) às mais absurdas (um grupo que tem que sobreviver a um tsunami; um pai e um filho que têm que aprender a viver em um mundo pós-apocalíptico; uma astronauta que tem que sobreviver ao espaço), mas o sucesso ou fracasso de todas elas está ligado a um elemento em comum: seu aspecto humano, que possibilita o envolvimento do espectador com os personagens.
Dirigido com convicção por Jean-Marc Vallée (do ótimo Clube de Compras Dallas), Livre lida com o tema “sobrevivência” de forma crua e dramática ancorada no realismo, trazendo uma “heroína” complexa e imperfeita como ser humano. É por isso que, como um filme estrelado por alguém que luta pela sobrevivência em meio a situações absolutamente desesperadores, este ótimo Livre chegue a humilhar o recente (e péssimo) Invencível. Admirável por jamais se acovardar diante da possibilidade de retratar sua protagonista como uma pessoa verdadeira e imperfeita, Livre é estrelado por uma heroína (Cheryl Strayed) valente e destemida, porém dona de receios, incertezas, medos, dramas e arrependimentos que a tornam multidimensional e mais crível enquanto ser humano. Constantemente, Cheryl faz aquilo que uma heroína estereotipada jamais faria no Cinema hollywoodiano: cogitar a possibilidade de desistir de seu objetivo, algo que pode ser reprovável à primeira vista, mas que qualquer pessoa poderia fazer simplesmente por pertencer a uma espécie insegura.
Da mesma forma, os dramas da protagonista servem de maneira enaltecedora e se tornam ainda mais apreciáveis artisticamente graças à sabedoria do diretor Jean-Marc Vallée ao criar conexões funcionais entre o presente complexo e o passado pesaroso da protagonista através de músicas, rimas visuais e até mesmo frases quando encaixadas em determinado contexto – e palmas também devem ser feitas à estrutura narrativa da obra, que entrega flashbacks constantes não com o intuito apenas de conferir um tom “sofisticado” ao longa, mas para complementá-lo narrativamente e tornar a protagonista ainda mais profunda por enfatizar as similaridades presentes entre épocas distintas de sua vida. Como complemento, Reese Witherspoon concebe Cheryl de maneira complexa e insegura, mas determinada o suficiente para criar ambiguidades na personagem e torná-la ainda mais convincente.
Contando ainda com um trabalho de fotografia exemplar que, com cores quentes na maior parte do tempo, acrescenta realismo ao que é visto em tela agindo em conjunto com a iluminação competente por privilegiar a influência da natureza nos ambientes em vez de luzes artificiais, Livre narra de forma ideal uma história que poderia facilmente cair para o melodrama ou – pior – para o maniqueísmo, algo que não ocorre graças não apenas às excelentes atuações ou ao belo roteiro, mas pela abordagem crua e verossímil conferida a partir de um ato de brilhantismo do diretor Jean-Marc Vallée. Ao fim da projeção, temos a impressão que a jornada valeu a pena.
Para Cheryl e para nós, os espectadores.