Lembro-me de uma ocasião, quando voltava do CCBB-RJ. Era noite, e um colega acompanhava a mim e mais duas pessoas enquanto caminhávamos pela Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, que, naquela hora, naquele dia, já se encontrava deserta, com exceção de algumas pessoas que desembarcavam da barca Niterói – Rio de Janeiro. Tínhamos acabado de sair de uma sessão da mostra “Monstros no Cinema”, quando este colega começou a dar os seus dois centavos. O filme em questão era Gremlins (1984), de Joe Dante. Não me recordo ao certo o que ele disse, mas lembro de se tratar do velho caso de insegurança analítica ou mesmo social que muitos insistem em disfarçar com a expressão “guilty pleasure“, do velho discurso do “filme tão ruim que é bom”, etc. Quem mora no Rio de Janeiro sabe que estar no centro da cidade à noite não é exatamente a situação mais propícia para uma conversa descontraída, então não tínhamos muito tempo para rebater a fala do sujeito. Em um momento, quando estávamos prestes a nos separar, cada um com o seu rumo, ele realiza uma comparação: “é igual aos filmes do Brian De Palma, impossível leva-los a sério, parecem paródias de filmes mais sérios” (o sujeito em questão era um estudante de cinema, e duvido que sua opinião se restrinja a ele próprio).
Já tinha visto uma coisa ou outra de De Palma, mas apenas os mais conhecidos (Scarface e Os Intocáveis, que, acredito, muitos assistiram enquanto passava na televisão, Carrie, que vi mais por uma paixão pelo horror e por Stephen King, e Um Tiro na Noite, que irei falar mais à frente) e lembro que meu único comentário no momento foi para ele tentar reconsiderar, ver mais coisas, que talvez não fosse bem assim. Não se tratou de nenhuma defesa digna, mas foi o possível naquele cenário deserto do centro da cidade, onde não sabíamos quem poderia estar à espreita. No curto período que se passou, conforme eu mesmo fui adentrando mais a fundo na filmografia de Brian De Palma, uma mudança de percepção começou a vir à tona. Talvez tenha sido quando vi John Travolta, após toda a perseguição em Um Tiro na Noite, chorar com Nancy Allen em seus braços enquanto fogos de artifício ocupam todo o céu e a música de Pino Donaggio se expande da cena, ou mesmo quando, em O Pagamento Final, vemos Carlito Brigante embaixo da chuva coberto pela tampa de uma lata de lixo enquanto vislumbra um futuro melhor em uma apresentação de balé em uma sala no prédio do outro lado da rua. Talvez tenha sido isso tudo e muito mais.
Esta lista, para além de lembrar os 80 anos deste cineasta tão subvalorizado, é também um conjunto de notas e percepções que tive ao longo dos anos que sucederam àquela noite no centro da cidade. Não creio realizar as defesas/análises que o mesmo merece (este mérito, dentre os principais defensores de De Palma, vai para Jean Douchet, cujos comentários acerca da obra do diretor são reveladores), mas sim um convite à descoberta (ou mesmo redescoberta) para aqueles que se permitem livrar dos preconceitos e adentrar à obra de quem, por maior que seja a nossa arrogância, revela-se muito mais inteligente que nós.
1 – Irmãs Diabólicas (Sisters, 1972)
Um dos primeiros filmes de Brian De Palma que realmente merece destaque (talvez outros, anteriores a este, sejam Hi Mom,de 1970, e Greetings, de 68, este último por ser um dos primeiros filmes estrelados por Robert De Niro. Ambos os filmes vem do impacto da febre da guerra no Vietnã nos Estados Unidos, e ambos se contaminam por ela). Há a aura hitchcockiana que paira por todos os filmes de De Palma, mas o que se destaca no filme é o principio para um formalismo depalmiano. Um momento merece destaque (apesar da sequência final merecer uma análise à parte). Um homem, que acompanhávamos durante todo o início do filme, é subitamente esfaqueado pela mulher com a qual passou uma noite. A música tranquilizante se transforma, e, após o golpe inicial, revelador, plano e contra plano são reduzidos a um mero movimento de câmera, que passa da sombra na parede da assassina apunhalando o homem para o seu corpo ensanguentado, apenas um pouco abaixo da mesma. O split-screen se impõe entre o interior do apartamento e seu exterior (que se revela o interior de outro apartamento) e une tanto vítima, assassino e testemunha, assim como insere no mesmo quadro a ação e a reação. A morte de um homem em uma metade do quadro revela a verdadeira protagonista no outro, e essa observação, este paroxismo reverbera em sua descida em busca de ajuda, que por sua vez faz com que a assassina (Margot Kidder, provavelmente em sua interpretação mais esquizofrênica) busque a ajuda de um homem, cujo verdadeiro papel nesta história só será revelado no fim (outro fator comum na obra depalmiana: a revelação de um mundo oculto, um mundo escondido pelas imagens), para limpar a cena do crime, tudo ocorrendo paralelamente até o tocar de uma campainha (o encontro entre aquela que vê e aquela que não sabe que é vista). Esta oscilação espacial será aperfeiçoada em filmes posteriores, mas Irmãs Diabólicas já nos traz um vislumbre do que será o suspense em De Palma.
2 – O Fantasma do Paraíso (Phantom of the Paradise, 1976)
É, de certa forma, a primeira versão musical de O Fantasma da Ópera, que só seria adaptada como tal para o teatro em 1986. Misto do livro já citado com a lenda de Fausto, traz William Finley, ator que já havia trabalhado com De Palma em seus primeiros filmes, como o fantasma homônimo, um compositor que tem sua obra roubada por Swan (Paul Williams, que também compõe as músicas do filme), um produtor amaldiçoado que jamais envelhece (uma espécie de Dorian Gray) e que, após sofrer um acidente que o deforma, decide se vingar do homem e tentar recuperar a mulher que ama (Jessica Harper, que depois ficaria conhecida por Suspiria). Pode não ser o mais lembrado dos filmes de De Palma, mas a mistura de influências que vão de Oscar Wilde à transcrições de cenas de Orson Welles (há uma retomada direta do início de A Marca da Maldade) e apresentações musicais que devem tudo à Robert Wise e Vincent Minneli são, unidas, aspectos marcantes que devem permanecer e se fortalecer em futuras revisões.
3 – Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980)
Como em Sisters (e mais do que em Sisters), retoma-se Psicose, de Alfred Hitchcock. A escolha de Angie Dickinson, que era um ícone tanto no cinema quanto na televisão, nos mostra alguns fatores determinantes deste filme. A cena que inicia a projeção, com a personagem de Dickinson em um chuveiro (novamente Psicose) enquanto sente um desejo visível em seu rosto e em seu corpo nu, apenas para ser revelado que na verdade é apenas um sonho, uma fuga do sexo frustrante com seu marido, já explicita o jogo entre representação e realidade que marcará o filme (o final deste remete diretamente ao final de Carrie). Entre esta cena e a morte de Dickinson, há uma longa sequência em um museu (novamente Hitchcock, desta vez Vertigo), que merece mais atenção. Após uma consulta com seu analista (Michael Caine), Kate Miller vai a uma galeria de arte. Cada olhar é uma revelação: um casal flertando entre si, outras pessoas observando quadros, cada situação intercalada pela observação de Kate. Subitamente, nos é revelado que, ao seu lado, está sentado um homem. Ela se surpreende: não sabe ao certo o que fazer, mas está visivelmente atraída por ele. Após um breve lampejo de desejo, nos é revelado que o homem saiu de sua posição. O que segue é quase um jogo de gato e rato, onde o desejo é a linha guia. Cada travelling nos revela um espaço diferente, e um novo fio condutor vai entrelaçando o anterior, com Kate caminhando para longe do homem, o mesmo desviando para outra direção e a subsequente volta da mesma, uma procura que culmina na entrada de ambos em um táxi rumo à mesma direção. A partir daí, com sua eventual morte no elevador, o protagonismo se fragmenta entre seu analista, seu filho e uma prostituta (Nancy Allen) que testemunha sua assassina. O retorno a Psicose se dá menos pelo nível psicológico, pelo travestismo revelado de Norman Bates (aqui espelhado pelo travestismo de Michael Caine), e mais como uma continuação da cena onde Bates observa a personagem de Janet Leigh tomando banho (cenas antes do famoso assassinato) por detrás de um buraco coberto por um quadro. É a multiplicação dos voyeurs, que agora não só olham, como escutam e são observados de volta, escondem-se através de quadros, vestidos e aparelhos telefônicos, e, mesmo quando tomam noção disso, parece sempre ser tarde demais.
4 – Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981)
Não há filme de Brian De Palma em que, mesmo nos momentos que aparentam não ter nenhuma ação mais fervorosa, o espectador não se levante de onde quer que esteja sentado e comece a andar de um lado para o outro, como alguém no corredor de um hospital esperando o filho nascer. Como, neste filme, quando John Travolta (talvez sua melhor interpretação, junto à Saturday Night Fever), com as gravações que realiza no inicio do filme, tenta reproduzir o que se revela um assassinato. É a cena de Blow-Up (Michelangelo Antonioni, 1966) de David Hemmings com as fotografias, mas se no filme de Antonioni a revelação do corpo vem como um choque que parece ter sido inserido de última hora, o fator surpresa que surge durante o processo, o áudio do filme de De Palma é justamente como as músicas de Bernard Herrmann nos filmes de Hitchcock: revela-se, nota por nota, fotograma por fotograma, uma construção. Não sabemos ao certo o que virá a seguir, mas sabemos que algo está surgindo, e não sabemos se haverá estrutura o suficiente para receber o impacto que vem com essa revelação. Destaque também para John Lithgow, que faz um assassino frio cuja função é justamente apagar aqueles que testemunham sem saberem que também estão sendo observados (a corda de seu relógio, que puxa compulsivamente e utiliza para matar, pode ser escutada logo no início quando Travolta está gravando folleys para seu filme) e Nancy Allen, na época esposa de De Palma e participante de seus filmes desde Carrie. A resolução de sua personagem neste filme é possivelmente o momento mais marcante tanto de sua carreira quanto a de De Palma, pois o horror que surge em De Palma, e visivelmente neste filme, não é necessariamente o da morte (mas uma hora ela chega a todos…), e sim (Vertigo, sempre Vertigo…) o da apropriação das reminiscências desta morte, essa transformação em uma mera imagem, um mero fragmento do Ser a ser utilizado a bel prazer, mesmo contra a própria vontade de quem o faz… A necrofilia se transforma em publicidade, em ferramenta, e não há resistência a não ser tampar os ouvidos no grito fatal.
5 – Dublê de Corpo (Body Double, 1984)
De Palma fala que o argumento de Vestida para Matar surgiu de uma lembrança de infância, quando sua mãe, desconfiada do marido, pediu para o filho segui-lo escondido portando um gravador. Isto pode remeter mais explicitamente a Blow Out, mas indica também alguns aspectos presentes em outros filmes, este não sendo uma exceção. Por mais que se fale muito em metalinguagem quando se discute este filme, e de fato ela está aqui, existem momentos que sobressaem a ideia da “câmera autoconsciente”. Mais do que a “revelação de um dispositivo”, é a trajetória da distância entre um olho e aquilo que ele observa, entre quem busca ver e quem não consegue não ser visto, entre quem transparece de um desejo tão forte que parece flutuar por um mundo que não pretende mudar por você. Quando Jake Scully (Craig Wasson), após observar sua vizinha pelo telescópio, desenvolve uma obsessão voyerística pela mesma, a ponto de segui-la durante um longo percurso que passa de um shopping até uma praia, o que vemos é a revelação destas distâncias que o telescópio costuma suprimir. Longos planos de Scully e um segundo homem seguindo Deborah Shelton, revelando as verdadeiras distâncias entre todos presentes nesta coreografia, entre a perseguição e a falta de ar de se estar próximo de quem (ou daquilo que) se deseja. No mais, complementando uma fala de Jean Douchet (“Criar imagens, hoje, sem reconhecer a existência da publicidade, seria completamente falso“), acrescento o seguinte: não se cria imagens hoje sem reconhecer a existência da pornografia. De Palma, longe de um pornógrafo, é acima de tudo um cineasta que encontra o erotismo dentro destes ícones pornográficos, nestes atores e atrizes que entram neste teatro sexual e, ao fim, reconhece o caráter explosivo (se pensarmos então na característica claustrofóbica presente pela fobia do protagonista deste filme, então…) destas imagens. Resta então Craig Wasson, após uma longa jornada emotiva (lembremos que ele é traído por sua namorada, pela qual volta sorridente de um péssimo dia de trabalho, logo no início), conseguindo, após muitos erros, trabalhar o papel de sua vida e aprender a sorrir novamente.
6 – O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993)
Há um aforismo de Franz Kafka que afirma o seguinte: “A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado“. É a trajetória de Carlito Brigante (Al Pacino, na década que realizou alguns de seus melhores papeis) rumo à plena realização. Saindo de uma longa estadia na prisão, precisa finalizar os assuntos inacabados de sua época de criminoso, enquanto lida com seu advogado corrupto, criminosos da nova geração e tenta reconciliar-se com sua namorada. Diferente dos filmes de décadas anteriores, este parece soar destoante. Talvez por ser um De Palma mais maduro, mas ainda assim isso soaria como algo depreciativo, especialmente se pensarmos na construção formal dos filmes que precedem este. Mas há algo que merece ser notado aqui: se, nas décadas de 70 e 80, os filmes de De Palma (com exceção, talvez, de Os Intocáveis e Pecados de Guerra) existem como um conjunto de cenas interligadas, porém com algumas que acabam se destacando do filme (como quando Scully adentra uma performance em um set em Body Double, ou a já citada cena no museu de Vestida para Matar), não comprometendo a estrutura mas não necessariamente respeitando uma linha estabelecida pela narrativa, ou mesmo pelo encadeamento de outras cenas, este Carlito’s Way já apresenta de forma mais sintética. Nada existe por acaso, ou ganha destaque que o faça destoar da narrativa como um todo. Se, em Body Double trata-se de realizar cenas onde a distancia entre olho e objeto sejam reveladas plenamente, já nos encontramos em outra revelação, a da distancia tênue entre vida e morte, o desejo do futuro melhor e os obstáculos que existem para além das idealizações. Pela primeira vez, talvez desde Carrie, um personagem que, para além de qualquer desejo material, sexual, ou da mera saciação da própria curiosidade, quer apenas viver em paz. E, durante estas duas horas e meia, é isto que nos é mostrado: personagens que respiram, se drogam, se amam e acabam sendo abatidas, mas que no fim conseguem reaprender a sorrir. Um filme de Brian De Palma.
7 – Missão: Impossível (Mission: Impossible, 1996)
A década de 90 foi extremamente frutífera para Brian De Palma, quando pôde realizar suas produções de maior orçamento (e, depois de 2000, nunca mais…), e este Missão: Impossível é de longe o seu filme mais conhecido (talvez mais pela franquia que gerou depois) e mais bem recebido. Para além de todo o caráter blockbuster, é de fato um ápice da carreira de De Palma, que soube fazer uma super-produção que não fosse um super-produto. O jogo de aparências de Vestida para Matar levado à última potência, com todas as artimanhas de máscaras, identidades falsas e traições. O pavio dos créditos iniciais corre durante todo o filme, se estende de tal forma que, diferente de O Pagamento Final, não sabemos o que irá acontecer ao fim. Sobre este filme, e também sobre o que se tornou esta franquia, é necessário um comentário: muito se compara, hoje, a série Missão: Impossível no cinema (pois, não esqueçamos, ela é inspirada em uma série de televisão) com os filmes de John Wick. É interessante, pois se nesta última franquia (esta utopia bolsonarista onde existem mais assassinos que pessoas à serem assassinadas) o que existe de mais interessante é a criação de gags absurdas envolvendo as mortes (as mortes por coice no terceiro filme, disparado o que mais realiza estas gags, pelo menos o que mais se esforça para inventá-las), o que existe na franquia de Tom Cruise, e que dá o primeiro salto com o filme de Brian De Palma, é justo o que já havia iniciado em O Pagamento Final, ou seja, o maior encadeamento das cenas, neste caso cada uma com uma revelação nova (e não necessariamente verdadeira), que irá desencadear em outra, até que todas as máscaras possam, enfim, cair.
8 – Olhos de Serpente (Snake Eyes, 1998)
O filme inteiro gira em torno da sequência inicial. Um longo plano-sequência que revela muito sem na verdade revelar quase nada. Conhecemos (superficialmente) algumas pessoas, dentre elas o policial corrupto que irá precisar realizar seu trabalho de forma séria pela primeira vez na vida, um comandante com segredos, uma falsa loura que sabe demais, um boxeador com uma dívida e um secretário assassinado. Há mais, porém estas coisas são reveladas aos poucos. Se o início é uma verdadeira síntese de informações, agressões e euforia por parte de uma grande plateia, o que segue é a fragmentação dos diversos pontos de vista, versões da mesma ocasião, uma grande análise de tudo que vimos (e que não pudemos ver) no início do filme. Invadem-se quartos de hotel, câmeras escondidas e áreas subterrâneas, e a conspiração se transforma em um organismo vivo que deve perecer. Como Missão: Impossível, um filme onde uma revelação desencadeia em outra, mas, desta vez, as descobertas atingem um nível muito mais emocional que no filme de Tom Cruise, confrontando as verdadeiras intenções de suas personagens com a imagem que as mesmas desejam passar. Não se fala muito de Stan Shaw neste filme (lembramos mais do louco Nicolas Cage, Carla Gugino, etc), mas o momento em que ele olha para um adversário poderia facilmente derrotar (mas é ele que deve ser derrotado) é um dos que mais volta quando lembro-me deste filme específico.
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OBS.: Paro esta lista no fim dos anos 90 por não ter me aventurado pela filmografia de Brian De Palma de 2000 para frente (com a exceção de A Dália Negra, um policial que, mesmo não fazendo jus a seus filmes anteriores, é, no mínimo, um filme divertido). Sabe-se que ele saiu dos Estados Unidos e partiu para a Europa, onde ele realiza seus filmes até hoje, sem a visibilidade comercial que tinha no passado.