14 anos se passaram desde que Borat chegou aos cinemas, transformou o britânico Sacha Baron Cohen em uma estrela mundialmente conhecida e revolucionou o gênero mockumentary ao expor, através de seu excêntrico protagonista, um lado sombrio, nacionalista, intolerante, odioso e falso moralista que até então era escondido pela sociedade norte-americana. De lá para cá, muitas coisas degringolaram no mundo: uma onda neofascista alimentada por mentiras e por discursos raivosos tomou conta de boa parte do planeta, líderes que jamais mereciam qualquer projeção se elegeram às presidências de suas nações e o ódio que antes as pessoas ao menos tentavam disfarçar agora passou a ser berrado aos quatro ventos sem vergonha alguma. Pois o fato é que o mundo é um lugar pior para se viver em 2020 do que era em 2006 – e, assim, só mesmo um personagem absurdo como aquele criado por Cohen seria capaz de retratar a realidade na qual vivemos hoje, sendo surpreendente, mas também fundamental que o ator tenha decidido resgatá-lo neste Borat: Fita de Cinema Seguinte.
Escrita pelo próprio Sacha Baron Cohen ao lado de outros sete roteiristas, esta continuação volta a se concentrar no jornalista Borat Sagdiyev, que, exatos 14 anos após o original, continua sendo mantido em prisão pelo governo do Cazaquistão depois que o documentário que realizou em 2006 levou o planeta Terra inteiro a enxergar o país como uma piada. Para compensar a vergonha, contudo, o primeiro-ministro cazaque decide enviar Borat de volta aos Estados Unidos, agora governados por Donald Trump, a fim de tentar melhorar a relação com o país, entregando ao vice-presidente Mike Pence um “presente”, digamos, fora do comum: o macaco Johnny, ministro da Cultura do Cazaquistão e maior ator pornográfico do país (pois é). No entanto, alguns percalços no caminho obrigam Borat a mudar de presente, trocando o macaco por… Tutar Sagdiyev, sua própria filha de apenas 15 anos de idade – e é claro que, no caminho, o repórter desenvolve uma relação especial com a menina.
Mas claro que, como o sucesso do primeiro filme elevou Sacha Baron Cohen ao status de “estrela mundialmente famosa”, a missão de repetir as pegadinhas de Borat sob a luz do dia certamente se tornou mais difícil, já que todas as suas possíveis vítimas o reconheceriam de antemão (e foi isto, inclusive, que levou o ator a abandonar o formato de “falso documentário” – repetido no razoável Brüno – em O Ditador). Felizmente, Cohen e os demais roteiristas encontraram uma solução perfeita para contornar o problema: obrigar o protagonista a assumir vários disfarces ao longo de sua jornada – e, se em teoria isto poderia tirar parte da graça de ver Borat em sua “forma” tradicional, na prática acabou permitindo que o personagem se reinventasse, exercendo sua imaginação, por exemplo, ao criar sub-personagens absurdos como John Chevrolet e até um “judeu” que… bem, só vendo para crer. Além disso, a decisão de disfarçar Borat do início ao fim da projeção acaba servindo, de certa forma, como uma espécie de sobre o próprio gênero mockumentary, refletindo parte desta relação entre farsa e realidade (o que está na nossa frente e o que não percebemos estar na nossa frente) que define o “falso documentário”.
No entanto, o mais importante nesta questão dos disfarces é o fato de estes permitirem que Borat agora tente se passar por um legítimo norte-americano – e pior: consiga. Equipado de macacões, camisetas quadriculadas, perucas, barbas postiças e um linguajar tão ofensivo que nem seu sotaque cazaque faz parecer menos americano, o protagonista consegue levar os cidadãos comuns que cruzam seu caminho a acreditarem que ele é como eles – o que ainda assim não é surpresa, já que o mundo nos últimos anos (como é mostrado nos cinco minutos iniciais) se mostrou capaz de eleger psicopatas que parecem saídos de uma esquete do Saturday Night Live, como (Mc)Donald Trump e seu cachorrinho tropical, Jair Bolsonaro. Assim, as atrocidades que saem da boca de Borat agora não parecem mais espantar as pessoas ao seu redor (como comprova a confeiteira que não hesita em escrever uma mensagem antissemita em um bolo), sendo chocante, por exemplo, que a memorável cena do rodeio no primeiro filme tenha virado fichinha perto da apresentação para um comício de trumpistas nesta continuação.
Neste sentido, é interessante como Sacha Baron Cohen parece encarar seu Borat quase como uma espécie de super-herói cujo traje resolveu voltar a vestir ao constatar o quanto o mundo piorou nos últimos 14 anos, empregando sua Arte como uma forma prática de tentar fazer… bom, alguma coisa (afinal, as eleições norte-americanas estão logo ali e a chance do problema representado por Trump se prolongar por mais quatro anos é algo que Cohen sente que precisa – e pode – combater apenas retornando ao personagem que o consagrou). Assim, se a cena com Mike Pence diverte pelo absurdo (e a cara de “Que porra é essa?” do vice-presidente será para sempre a primeira imagem que me virá à mente quando pensar nele), todo o clímax envolvendo Rudy Giulliani causa um imenso desconforto que, ainda assim, mostra-se útil ao escancarar o comportamento predatório e hipócrita que o republicano adota por trás das câmeras e que vivia escondido até então.
Menos caótico que o primeiro (não há nenhuma cena que se equipare, por exemplo, àquela em que o protagonista e seu produtor, Azamat, brigavam pelados num quarto de hotel), Borat 2 ainda assim traz o brilhante Sacha Baron Cohen em uma performance que, em vez de apenas repetir o que já havia feito em 2006, reinventa o personagem ao trazê-lo interpretando outros sub-personagens (e sua incapacidade de “sair” do papel mesmo nos momentos mais arriscados da narrativa continua impressionante). No entanto, o grande destaque desta continuação é mesmo a jovem Maria Bakalova, que não apenas encarna Tutar com uma entrega física que em nada fica devendo à de Cohen (basta ver o que os dois conseguem na sequência que se passa num baile de debutantes), como também confere à personagem uma ingenuidade notável e que, convertida em uma vontade genuína de fazer o que é certo (para si e para as outras mulheres), torna-se fundamental para o desfecho do longa.
E é aí que Borat 2 realmente pega o espectador de surpresa, revelando um coração imenso e oferecendo uma resolução tocante para os arcos tanto do protagonista quanto de sua filha – mesmo que o filme em si não resista a criar um ou outro momento meloso que trai um pouquinho a proposta anárquica do projeto e que indica que a “domesticação” que Cohen sofreu de Hollywood em O Ditador (lembram-se do dispensável romance entre o general Aladeen e a norte-americana vivida por Anna Farris?) ainda encontra-se em maior ou menor grau. Ainda assim, o otimismo de Cohen ao encerrar a narrativa com aquele desfecho não deixa de ser contagiante, sugerindo acreditar que mesmo as culturas mais intolerantes do mundo têm a esperança de evoluir.
Dito isso, espero sinceramente que, em 2034, quando Sacha Baron Cohen julgar necessário tirar o personagem da gaveta para um eventual Borat 3, o planeta esteja em condições um pouco melhores. Afinal, o que esta Fita de Cinema Seguinte indica é que ainda dá tempo de fazer os absurdos e as caricaturas da vida real voltarem a existir somente na ficção.