Babenco (1)

Título Original

Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou

Lançamento

26 de novembro de 2020

Direção

Bárbara Paz

Roteiro

Bárbara Paz e Maria Camargo

Elenco

Hector Babenco, Willem Dafoe e Bárbara Paz

Duração

74 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Bárbara Paz

Distribuidor

Imovision

Sinopse

Hector Babenco foi um cineasta que viveu e morreu realizando o que fazia sua vida ter algum sentido: a sétima arte. Em relatos marcantes sobre as memórias, amores, reflexões, intelectualidade e a frágil condição de saúde do artista, o documentário revela o quanto seu amor pelo cinema o manteve vivo por tantos anos.

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Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou | Crítica

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A vida é como um sopro, como dizia Oscar Niemeyer. Com a mesma rapidez que chegamos a este mundo, o abandonamos logo em seguida – e, por mais que passemos o tempo inteiro tentando encontrar um sentido para estarmos todos aqui presentes, o fato é que nossa pura existência não passa de uma efemeridade cujo fim pode estar ali na próxima esquina. Isto vale para todo mundo, tanto para o anônimo que passa a vida inteira trabalhando em um discreto escritório longe das câmeras quanto para a superestrela que vive de shows lotados e de aparições em programas de auditório populares. Neste sentido, a velha máxima de que “a única certeza que todos temos sobre a vida é a de que, um dia, ela acaba” não poderia ser mais apropriada, por mais clichê que possa parecer.

Assistir a Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou é ser lembrado disso ao longo de 74 minutos. Dirigido, produzido e escrito por Bárbara Paz, viúva do cineasta-título, este é um documentário que discute não a vida ou a obra do argentino Hector Babenco, mas – indo na contramão de quaisquer expectativas – sua morte (que se deu em 13 de julho de 2016 após um infarto que encerrou, além de tudo, uma batalha de mais de 30 anos contra um câncer). Assim, em vez de se apresentar como um recorte jornalístico e informativo acerca do que o diretor realizou ou de quantos prêmios ganhou ao longo de sua carreira, o longa prefere se concentrar em imagens caseiras, registradas na intimidade entre o diretor e Paz, mostrando seus últimos meses de vida e sua crescente certeza de que o fim estava cada vez mais próximo e inevitável.

E é através destes registros que somos lembrados de um detalhe aparentemente óbvio, mas que nos foge com facilidade: o fato de que até mesmo Hector Babenco, por mais talentoso e influente que fosse, ainda era um ser humano comum, dotado de desejos, paixões, dores, temores, falhas, inseguranças e frustrações. Mesmo disputando o Oscar com nomes como Akira Kurosawa, Sydney Pollack, John Huston e Peter Weir (como Paz faz questão de relembrar), o argentino também carregava sua parcela de sonhos que jamais vieram a se concretizar, chegando a lamentar, ainda nos primeiros 20 minutos do documentário, que sempre tivesse tido uma relação tão difícil com o “fazer” artístico (“É como se o imaginário pensasse tanto com o que ainda deveria ser feito e o tempo fosse ficando curto e restasse a sensação de que a grande obra não foi feita”, diz Babenco). Afinal, não existe frustração mais humana do que reconhecer os sonhos nunca realizados.

Aliás, tanto Hector Babenco era humano que a própria ideia de Morte (sim, com inicial maiúscula) pairava em sua cabeça com frequência, contemplando-a desde a infância (quando brincava de apagar e acender a luz do quarto a fim de simular que estava morto, já sugerindo um interesse em encenar o ato) até a vida adulta (quando o câncer naturalmente o levou a encarar a possibilidade cada vez mais provável de um desfecho) – e é fundamental que Bárbara Paz enfatize esta contemplação, pois nos lembra de como o cineasta lidava com temores e conflitos existenciais essencialmente humanos. Neste sentido, a abordagem de Paz não poderia ser mais apropriada: em vez de perder tempo com depoimentos de terceiros falando sobre como Babenco os inspirou de uma forma ou de outra, a diretora prefere propor, através das imagens (e da montagem que as une), um mergulho visceral na cabeça de Babenco enquanto este flertava com a Morte – e, assim, quando uma câmera subjetiva nos coloca no fundo do mar enquanto ouvimos uma narração em off do próprio cineasta discorrendo sobre o ocaso da vida, imediatamente sentimos que o somos.

Mas não é só: em vez de utilizar as imagens de arquivo (esperadas em um documentário como este) como uma forma burocrática de informar ao espectador as coisas que Babenco fez em vida, Paz prefere empregá-las a fim de refletir simbolicamente o estado de espírito do protagonista no presente, sendo notável, por exemplo, que, quando trechos de Pixote, a Lei do Mais Fraco, O Beijo da Mulher-Aranha e Carandiru surgem na tela, estes apareçam com o propósito não de relembrar as obras que o cineasta dirigiu, mas de comparar as dores e as frustrações sentidas pelos personagens destes filmes às do próprio Babenco (numa relação mais sensorial do que meramente ilustrativa). A relação entre o artista e sua Arte, portanto, é algo que Paz leva até o fim de seu documentário, chegando ao ponto de trazer Willem Dafoe em uma participação inesperada, quando, ao encarnar o protagonista de Meu Amigo Hindu, interpretou um avatar de Hector Babenco no leito do hospital – e o fato de mostrar as discussões entre o ator e o diretor acerca de como deveria ser a performance do primeiro só reforça ainda mais o interesse do segundo em criar uma encenação a partir da Morte.

O que nos traz ao desfecho de Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou – e, a partir daqui, recomendo que só prossiga com a leitura quem já tiver assistido ao filme –, quando Bárbara Paz decide elevar a relação artista-Arte a um outro patamar ao oferecer, pela primeira vez em mais de uma hora de projeção, uma contemplação não da morte, mas da vida. Afinal, como o próprio Babenco alega: “Eu já vivi a morte. Só falta fazer o filme (sobre ela).” – e, assim, é particularmente tocante a coragem de Paz ao tomar a liberdade de criar um final que, em vez de se manter fiel aos acontecimentos reais, inventa uma realidade alternativa e poética na qual seu finado marido pode perfeitamente estar por aí, vivendo uma nova vida e realizando novos sonhos em algum canto do mundo. Pois tanto Babenco quanto Paz são, antes de qualquer coisa, artistas interessados em articular uma perspectiva própria sobre o que viveram (ou, principalmente, sobre o que não viveram).

Nada mais apropriado, portanto, do que usar a linguagem cinematográfica e os elementos oferecidos pelo gênero para criar uma visão dos fatos que, mesmo encaixada em um documentário, se permite imaginar um final aberto a interpretações fictícias (e, a meu ver, otimistas e condizentes com a propensão a simbolismos exibidas por Paz e Babenco).  Como o mestre Eduardo Coutinho dizia: “O que importa não é a filmagem da verdade, mas a verdade da filmagem” – ou seja: o compromisso do documentarista não é necessariamente com os fatos, mas com a forma com que ele retrata a sua visão de mundo na tela.

E se a Arte permite ao artista sonhar, por que se prender às imposições da realidade? Afinal, o artista nunca morre. O que termina é seu corpo, mas sua Arte fica para sempre.

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