Tenet representa a primeira vez em muitos anos (ou seria a primeira vez na História?) em que Christopher Nolan me pareceu estar realizando um filme mais para se divertir do que para se provar o gênio que acredita ser (e que talvez fosse mesmo há algum tempo, antes de começar a despencar). Foi por este motivo, aliás, que me peguei surpreso com o bom humor do longa quando, em certo momento, o protagonista vivido por John David Washington surgiu sendo revistado (leia-se: apalpado) por um dos seguranças do vilão e dizendo “Ei, de onde venho, costumam pelo menos me pagar um jantar antes” – numa piada tola e adolescente que eu, particularmente, não esperava ouvir em um filme dirigido por Nolan. Neste sentido, Tenet se revela a mais descompromissada das obras do cineasta, embora eventualmente se perca na obrigação de ser um típico “filme de Christopher Nolan” e de forçar a austeridade habitual do diretor em uma narrativa que clamava por uma leveza maior.
Obviamente concebido por Nolan no desespero de ter que entregar um novo filme o mais rápido possível, agarrando-se à primeira ideia que lhe ocorresse por mais forçada que esta pudesse ser, o roteiro de Tenet parte de uma premissa que, com muita boa vontade, poderia ser chamada de estúpida (o que não é um problema, como discutirei adiante): depois de sofrer um atentado que quase o leva à morte, um agente da CIA que conhecemos apenas como o Protagonista é convocado para investigar de onde surgiu um estoque de armas de fogo que funcionam em entropia invertida (ou seja: em vez de dispararem tiros, elas recebem tiros já dados) e que aparentam ter vindo do futuro. A partir daí, o tal sujeito se une ao agente Neil (que o ajuda na missão) e descobre que o russo Andrei Sator deu um jeito de entrar em contato com o futuro, preparando o cenário ideal para deflagrar uma Terceira Guerra Mundial entre os soldados de hoje e os de amanhã – e, assim, o Protagonista terá que correr contra o tempo para impedir que os planos do vilão se concretizem e que a Terra seja destruída e… blábláblá.
Seja como for, o fato é que nunca devemos julgar um filme por sua premissa – afinal, o que importa mesmo é como esta é executada. Assim, por mais forçados que pareçam os conceitos propostos por Tenet (e consigo facilmente imaginar Nolan em seu escritório, pouco após ser injustamente indicado ao Oscar por Dunkirk, dizendo para si mesmo “Ok, tenho três anos para entregar um novo longa. O que posso inventar agora? Ah, já sei: objetos que andam de trás para frente!”), ao menos o filme em si não faz muita questão de levá-los a sério: em vez de perder tempo buscando explicações pseudo-científicas para as tolices que apresenta, Nolan prefere substituir os diálogos expositivos (pelos quais sempre foi pesadamente criticado) pela simples fala de uma cientista que, ao explicar os conceitos da trama para o Protagonista logo no início da projeção, pede: “Não tente entender; apenas sinta” (e, de minha parte, confesso ter levado sua dica a sério, já que desisti de tentar acompanhar as várias reviravoltas da narrativa lá pela vigésima quinta destas).
Em outras palavras: a questão da “entropia invertida” é encarada por Nolan menos como algo cientificamente embasado e mais como um mero recurso visual que lhe permita brincar com um efeito técnico bacana – e, neste sentido, Tenet é bem-sucedido, criando sequências de ação que se destacam ao imaginarem uma perseguição entre dois carros em direções opostas (uma normal e outra, invertida) ou uma briga entre dois homens enquanto um deles desfere socos e pontapés de trás para frente (e a relação entre um indivíduo em direção “normal” e objetos invertidos representa um dos grandes atrativos do longa – embora eventualmente acabe cansando graças à repetição, culminando num terceiro ato aborrecido neste sentido). Além disso, a mesma lógica de deslumbramento se reflete na trama em si, que, por mais enrolada que seja, se revela um esforço de Christopher Nolan em criar uma aventurinha ao estilo de James Bond (aliás, o cineasta até chega a ensaiar uma desconstrução do arquétipo do espião 007 ao trazer o Protagonista dizendo que “Não é charmoso a ponto de seduzir outras mulheres” – e é uma pena que a tentativa pare por aí).
Infelizmente, é aqui que as fragilidades de Tenet começam a aparecer: embora assumindo suas tolices e o caráter escapista de sua premissa, Christopher Nolan ainda é um cineasta racional, sisudo e travado demais para conseguir mergulhar no descompromisso que aparenta buscar – afinal, o jeito de Nolan se divertir ainda é o jeito de Nolan. Por consequência, durante boa parte da projeção, fica a impressão de que o filme não consegue se equilibrar entre a austeridade habitual de seu realizador e a inconsequência declarada de um James Bond, sendo sintomático, portanto, que ele passe o tempo todo tentando fabricar um sentimento de urgência (do tipo “Olha como o meu filme é tenso!”) que, justamente por ser tão artificial, acaba traindo a proposta irreverente da narrativa (neste sentido, Nolan tem muito que aprender com Christopher McQuarrie, dos dois últimos Missão: Impossível). Aliás, o desespero do diretor em imprimir tensão a cada segundo de projeção é tão gritante que a trilha de Ludwig Göransson (Pantera Negra) parece fazer questão de irromper nos ouvidos do espectador do início ao fim, se fazendo presente mesmo quando os personagens estão calmamente reunidos e planejando o atentado que coordenarão.
O que nos traz ao grande problema de Tenet: a necessidade que sente de incluir, no meio do conflito principal, um drama intimista entre os personagens – no caso, toda a subtrama envolvendo o filho de Sator e sua esposa, Kat. Se em teoria isto serviria para trazer um elemento humano a uma história de conflitos essencialmente globais, na prática acaba soando como um draminha encaixado à força e que Nolan, como o diretor excessivamente racional que é por natureza, filma de maneira hermética, aborrecida e deslocada de todo o resto (o que, vale apontar, é um erro recorrente em sua filmografia: pensem no romance entre Bruce Wayne e Miranda Tate em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, na interação entre Cooper e sua filha em Interestelar ou no menino que se acidenta num barco em Dunkirk). Como se não bastasse, a resolução dramática do tal conflito é tão artificial quanto o desenvolvimento deste, sendo meio patético que o filme tente nos convencer (sem sucesso) de que, mais importante do que a salvação da Humanidade, é a salvação do filho de Kat.
Tratando seus personagens menos como seres humanos e mais como muletas para que a narrativa avance (o que, de novo, não seria um problema caso a finalidade fosse assumida em vez de disfarçada com draminhas bobos), Tenet é protagonizado por um herói de personalidade nula e que se torna praticamente irrelevante no terceiro ato – e, se ainda assim simpatizamos com ele, é porque o ator que o interpreta, John David Washington, é carismático por si só. Já Robert Pattinson encarna um personagem que existe apenas para dizer ao Protagonista tudo aquilo que deve fazer, não sendo à toa que o próprio filme não faça a menor ideia de onde ele veio ou para onde vai (e mais uma vez: se ainda assim gostamos de Neil, é graças mais à simpatia prévia que já tínhamos por Pattinson do que pela construção do personagem em si). E, se Kenneth Branagh encarna um vilão que resume as crises de identidade sentidas pelo próprio longa, alternando desajeitadamente entre o overacting típico dos vilões de James Bond e a solenidade habitual dos tipos criados por Nolan, Elizabeth Debicki dá vida a uma donzela em apuros que existe mais para mover os arcos dos demais personagens e menos para se desenvolver por conta própria, carecendo de qualquer personalidade.
Sem conseguir emplacar um grande filme desde A Origem (lançado há dez anos!), o Christopher Nolan de hoje parece cada vez mais distante do brilhante diretor que antes nos surpreendeu com a estrutura de Amnésia, com os conflitos de O Grande Truque e com a atmosfera (aí, sim) tensa de O Cavaleiro das Trevas. E, se Tenet demonstra que o cineasta ao menos está buscando se soltar um pouco mais, ao mesmo tempo indica que ainda há um caminho a ser percorrido até que ele retorne de vez à boa forma.