Compondo aquela que, para muitos, é a representação definitiva do icônico arqui-inimigo do Batman, a junção do brilhantismo de Alan Moore com as ilustrações fantásticas de Brian Bolland transformaram A Piada Mortal não apenas numa das obras-primas dos quadrinhos, mas em uma espécie de guia definitivo para quem deseja compreender a essência insana e perturbadora do doentio Coringa (e não é à toa que, ao escrever sobre a graphic novel, empreguei mais de dois parágrafos para relatar como a loucura do vilão era abordada de maneira densa e apavorante). Em suma, trata-se de uma história que merecia preservar um legado à sua altura em vez de ganhar uma adaptação audiovisual ordinária e preguiçosa como esta animação que a Warner Bros. produziu para o mercado de DVDs e Blu-rays (e que foi exibida em alguns cinemas no último dia 25).
Escrita pelo renomado quadrinista Brian Azzarello (de 100 Balas), a adaptação começa se concentrando numa aventura onde Batgirl (leia-se: Barbara Gordon) persegue o sobrinho de um chefão do crime que, conforme a projeção avança, revela-se bem mais perverso que seu tio. Depois que este prelúdio – que dura cerca de 30 minutos – se encerra, há uma elipse de tempo indeterminado e finalmente somos apresentados à trama que todos estamos interessados em (re)ver: após escapar mais uma vez do Asilo Arkham, Coringa se dirige à residência de Jim Gordon e dá um tiro que faz com que Barbara perca os movimentos das pernas. Com isso, Batman é obrigado a ir para um parque de diversões decrépito onde o vilão tenta a todo custo levar o comissário à insanidade e torturando sua vítima com fotos de sua filha nua e ensanguentada.
Basta ler este breve resumo para ter uma ideia de onde começam os problemas de A Piada Mortal: percebendo que seria difícil transformar uma narrativa que, nos quadrinhos, dura poucas dezenas de páginas num longa-metragem de 76 minutos, Azzarello cria uma historinha genérica de combate ao crime que mais parece um (péssimo) episódio de alguma série animada do Homem-Morcego encaixado aleatoriamente nesta produção apenas para encher linguiça (e os esforços do roteirista em disfarçar este defeito são gritantes ao ponto de resultarem numa narração em off que traz Batgirl dizendo: “Não era assim e comigo que você esperava que isso tudo começasse, não?“). Por falar na heroína, uma das funções deste prólogo pavoroso e entediante (além de tapar buraco) consiste em conferir profundidade dramática à personagem para potencializar o impacto sentido pelo espectador na hora em que ela fosse baleada. Sendo assim, por que diabos ela torna-se quase que totalmente irrelevante depois disso?
Depois de 30 minutos terrivelmente desinteressantes, diversas tentativas de apostar no empoderamento feminino que surgem artificiais e uma bizarra cena de sexo entre Batgirl e Batman, o primeiro terço do filme enfim se encerra e dá início à trama sugerida pelo título – inclusive, notem que usei o termo “primeiro terço” em vez de “primeiro ato”, já que o roteiro de Azzarello não parece ter noção alguma de estrutura narrativa (algo que nem a montagem parece ter interesse em resolver, adotando um fade out deselegante para indicar a transição do prelúdio para a história da graphic novel original). Infelizmente, até mesmo a adaptação da HQ homônima revela-se um tremendo desapontamento, já que a produção se limita a copiar no piloto automático cada linha de diálogo do roteiro de Alan Moore e não consegue ocultar uma realidade bastante prejudicial: não havia a mínima necessidade de transformar A Piada Mortal num longa-metragem. Pra piorar, o fato de ser precedido por um prólogo tão cansativo e desastroso leva o espectador a se sentir exausto na hora em que a legítima adaptação passa a marcar presença (nesta altura do campeonato, só é possível torcer para que a película chegue logo ao fim).
Prejudicada por um enredo que soa episódico e diálogos irregulares, a produção também é seriamente decepcionante no que diz respeito à sua natureza técnica: sim, é verdade que não podemos esperar muito de uma obra relativamente barata que não foi sequer desenvolvida para passar nos cinemas, mas quando constatamos que a própria Warner/DC já se destacou em animações infinitamente superiores (e que, diga-se de passagem, deixaram a Marvel comendo poeira em sua parceria com a Lionsgate), torna-se difícil aceitar a falta total de fluidez nos personagens, seus movimentos truncados, seus trejeitos rígidos e seus gestos labiais que não condizem com as falas que saem de suas bocas. Por outro lado, Mark Hamill (o eterno Luke Skywalker, de Star Wars) mostra-se excelente em sua performance doentia e ameaçadora, ilustrando Coringa como um perigo real através de seu trabalho minucioso como voice actor.
Agradando ocasionalmente graças a alguns instantes que remetem à graphic novel e eliminando completamente a força da ambiguidade que envolve o desfecho da HQ original (onde está o feixe de luz?), A Piada Mortal já poderia ser considerada uma animação medíocre caso fosse lançada diretamente em home video. Ao ser exibida nos cinemas, porém, o embaraço torna-se ainda pior e mais deplorável, representando uma apunhalada nas costas de uma obra magistral e que, graças à eficácia de Alan Moore e Brian Bolland, segue capaz de resistir às bofetadas desferidas contra seu legado – como é o caso desta adaptação tola e que não encontra um propósito satisfatório para existir.