Há cerca de quatro anos, escrevi sobre o eficiente Um Limite Entre Nós, que, dirigido, produzido e estrelado por Denzel Washington com base na peça teatral Fences, de August Wilson, foi indicado a quatro Oscars e concedeu a Viola Davis o primeiro de sua carreira. Em minha crítica, aleguei que se tratava de um ótimo filme, mas também não pude deixar de observar, em dado momento, que sofria de um problema óbvio: do ponto de vista formal/estético, Washington demonstrava sérias dificuldades em adaptar o texto de Wilson para a linguagem cinematográfica, limitando-se a apenas filmar os longos monólogos sem perceber que estes funcionavam melhor no Teatro do que no Cinema (afinal, mesmo dividindo vários elementos em comum, ainda se trata de duas linguagens diferentes entre si) – um problema que volta a acontecer neste A Voz Suprema do Blues, também produzido por Washington e baseado em outra peça de Wilson.
Dirigido por George C. Wolfe (cuja experiência, não por acaso, é maior no Teatro que no Cinema), o filme se passa na Chicago de 1927 e acompanha a cantora Gertrude “Ma” Rainey, considerada a mãe do blues (todos a chamam de “Ma” justamente por isso), em uma tarde quente na qual gravará em estúdio seu novo álbum, “Ma Rainey’s Black Bottom” (que também é o título em inglês do filme e da peça que o inspirou). Gerenciado por homens brancos desesperados em se aproveitarem do sucesso da cantora, o estúdio que serve de cenário para toda a narrativa conta com a presença ilustre, é claro, da banda contratada para gravar com Ma Rainey e que traz, entre seus integrantes, o ambicioso trompetista Levee, que enxerga naquela reunião uma oportunidade para divulgar seus trabalhos autorais e talvez engrenar uma carreira solo – e, a partir do embate entre as personalidades fortes de Ma e Levee, surge a maioria das tensões ocorridas naquela tarde.
A esta altura, creio que já deu para perceber que A Voz Suprema do Blues se passa, na maior parte de seus 94 minutos, dentro das paredes do estúdio que abrigou a gravação de “Black Bottom”, alternando apenas entre duas ou três salas daquele edifício (e saindo uma ou duas vezes para a rua em frente a este) – e isto, por natureza, já anuncia a origem teatral do projeto como um todo; o que não seria um problema caso Wolfe compreendesse que levar o roteiro de uma peça ao Cinema envolve mais do que apenas fixar a câmera no rosto dos atores e filmar seus longos monólogos. Ora, o Teatro pode dividir um monte de elementos com o Cinema (atores, roteiro, direção, figurinos, direção de arte, etc), mas é óbvio que este conta com particularidades que o fazem ganhar um ritmo diferente, mais dinâmico (enquadramentos, movimentos de câmera, montagem, etc). Assim, se Denzel Washington ao menos tentava elaborar uma decupagem mais ágil em seu Um Limite Entre Nós, Wolfe se limita a registrar passivamente o que sai da boca dos atores, fazendo o filme depender quase exclusivamente do texto e do elenco (a mise-en-scène, portanto, torna-se meramente ilustrativa e nada imaginativa/propostiva).
Há, também, uma fragilidade extra no trabalho do roteirista Ruben Santiago-Hudson (responsável por adaptar o texto de August Wilson) e que diz respeito à construção tanto dos temas quanto dos personagens biografados: a incapacidade de desenvolver ambos um pouco além do superficial – e, se este problema já existia na peça de Wilson, não sei e nem importa; isto não deveria ser justificativa para o problema existir no filme. Ao escolher se concentrar em um recorte muito específico das vidas de Ma e Levee, o projeto acaba não se aprofundando muito, por exemplo, nos ideais e nas motivações que os tornaram os artistas que são/eram – o que, por si só, não é um equívoco, já que o longa não se propõe a ser uma biografia sobre os dois. O que é frustrante, no entanto, é perceber como o filme opta por, sim, abordar os discursos e as experiências de vida de Ma e Levee, mas de forma breve e resumida (e todo o monólogo da cantora sobre como os brancos jamais entenderão o blues, por exemplo, é fascinante e justamente por isso merecia ser desenvolvido em mais do que aqueles dois ou três minutos).
Dito isso, considerando que se trata de um filme que deposita a maior parte de sua força nos ombros de seus atores, é esperado que estes se tornem os responsáveis por salvar o projeto ou por afundá-lo de vez – e, dentro das limitações do roteiro (para não citar as da direção), a dupla principal do longa faz um trabalho admirável: marcando a última aparição de Chadwick Boseman (a quem o filme é dedicado) em função de sua morte precoce no ano passado, A Voz Suprema do Blues se torna, neste sentido, um atestado do talento do ator, que, aqui, confere a Levee uma vitalidade que resulta de sua ambição e que, por consequência, acaba fazendo sua dor soar ainda mais impactante ao surgir de modo inesperado (e através de um monólogo específico que Boseman conduz com devoção absoluta e que provavelmente será o clipe usado na cerimônia do Oscar para anunciá-lo entre os indicados). Já Viola Davis, embora cuidadosa e eficiente em sua composição, fica presa a uma personagem cuja antipatia acaba mal direcionada, já que não se restringe apenas aos brancos (o que seria compreensível), mas também aos membros da banda que a acompanha e que não mereciam ser humilhados por Ma.
E, no fim das contas, é curioso que a cena mais inteligente de A Voz Suprema do Blues seja justamente aquela que não existia no texto de August Wilson e que foi criada exclusivamente para o filme: a que encerra a projeção e que, sem trazer uma única linha de diálogo (apenas letras cantadas), consegue resumir a injustiça e o estelionato artístico que a indústria branca cometeu contra Levee – e ainda comete contra os negros – com uma sutileza que faltou a todas as cenas que vieram antes.