Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre não seria o filme que é caso fosse dirigido por um homem. Por mais que se esforce, um indivíduo do sexo masculino jamais conseguiria entender na prática como é a realidade feminina e os conflitos que as mulheres encaram no dia a dia em função dos tipos de abuso (velado ou escancarado) que sofrem do início ao fim de suas vidas. O homem pode até ouvir, tentar compreender e demonstrar apoio, mas saber o que é ser julgado por sua vida sexual, aguentar olhares invasivos e cantadas fora de hora, ter suas competências diminuídas em prol de sua aparência física e se desgastar ao correr atrás do que deveria ser um direito… não, um homem não é capaz de saber nada disso. Assim, ao ser dirigido e escrito por uma pessoa que vive e sente na pele o impacto das situações que retrata, o filme se mostra contundente não apenas ao retratar esta realidade, mas também ao convidar o público masculino a um exercício de empatia.
Escrito e dirigido por Eliza Hittman (aliás, a equipe por trás da produção é quase toda feminina), Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre gira em torno de Autumn, uma garota de 17 anos que mora na Pensilvânia e que, ao se descobrir grávida sem ter planejado, decide buscar uma forma de realizar um aborto. O problema é que, em sua terra natal (lembrem-se: diferente do Brasil, os Estados Unidos têm legislações particulares para cada estado), o procedimento só é permito quando autorizado pelos pais da paciente – e, como a família de Autumn se revela fria e incapaz de prestar o mínimo de apoio à menina, esta se vê obrigada a pegar um trem em direção a Nova York, onde o aborto é mais viável, mesmo contando com pouquíssimos dólares na carteira. A “sorte” – se é que há alguma – é que Autumn poderá contar ao menos com a ajuda de uma única familiar: sua prima Skylar, que se dispõe a roubar um dinheirinho do caixa da loja que a emprega e partir na jornada ao lado da protagonista.
Adotando uma atmosfera crua e realista que ajuda a mergulhar o espectador no universo e nos dramas da protagonista, Hittman se preocupa não em empregar os elementos de linguagem que tem à disposição (fotografia, design sonoro, montagem, etc) de forma exibicionista, mas em usá-los objetivamente para mostrar o cotidiano de Autumn e os obstáculos que nele surgem. Neste sentido, a cineasta é hábil ao retratar como uma situação leva à outra, detalhando, no processo, como uma cadeia de eventos acumulados atira a protagonista em uma realidade na qual, por ser mulher, é continuamente condenada por tomar suas próprias escolhas: Autumn é impedida de abordar porque sua gestação passou do período permitido na Pensilvânia (o que depois descobrimos ser mentira); ela deixa de contar aos pais (retratados pelo filme com frieza e distanciamento absolutos) sobre sua gravidez porque teme a reação deles; ao viajar para outra cidade com pouco dinheiro no bolso, ela é obrigada a submeter-se ao absurdo em troca de uns tostõezinhos para depois voltar para casa; e assim por diante.
Não é surpresa, portanto, que o desespero de Autumn a faça adotar uma postura sempre reservada e calada, sendo particularmente fascinante como a estreante Sidney Flanigan (que se tornará uma estrela depois deste filme) retrata o caráter fechado da protagonista através de uma performance que entende que “sutileza” não quer dizer “inexpressividade”, mostrando-se cuidadosa ao transformar a expressão impassiva e a postura discreta da jovem em sintomas de sua realidade – uma realidade que, de tanto parecer que não tem solução, a leva a tomar atitudes dolorosas de se ver, como socar a própria barriga (provocando hematomas) na ânsia de livrar-se daquele feto. Aliás, é revelador que, mesmo quando Autumn enfim está na clínica que deveria acolhê-la, a estrutura sexista do mundo ao seu redor se encarrega de converter o ato em uma sessão de humilhações, obrigado a garota a relembrar os traumas que sofreu e que a levaram até aquela recepção (na longa cena que, aliás, justifica o título do filme e que comprova que a impassividade de Flanigan era não acidental, mas parte de uma performance, já que a atriz logo se revela capaz de ir ao choro e de retratar o desespero de Autumn com uma ênfase excruciante).
Mas Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre vai além, fazendo questão de lembrar, também, como o silenciamento das mulheres, o roubo de seus direitos e o julgamento acerca de suas decisões permitem que a sociedade como um todo sinta-se livre para abusar de seu espaço – e, assim, mesmo pedindo licença do trabalho ao alegar estar doente, Autumn não conta com a compreensão de seu chefe, que insiste em não liberar a garota. Da mesma forma, se a marcha de fundamentalistas cristãos que protestam em frente à clínica de aborto (à la Sara Winter e seus “300 pelo Brasil”) e o moleque que fica dando em cima de Skylar (que, por sinal, é vivida por Talia Ryder com uma lealdade que torna factível seu carinho por Autumn) e posando de bom moço apenas para depois obrigá-la a retribuir com um beijinho podem parecer forçados à primeira vista, logo nos damos conta de que, na verdade, situações assim infelizmente são rotineiras no mundo real (afinal, por mais absurdos que sejam, o assédio, a perseguição e o julgamento moral encontram-se no cotidiano de… bem, de todas as mulheres). Em outras palavras: se estes momentos soam inconvenientes, é porque são mesmo.
Encontrando espaço também para mostrar como a precariedade do sistema de saúde dos Estados Unidos é um problema crônico (ao carecer de um sistema universal e acessível, o sistema de lá pode transformar a busca por um procedimento padrão em uma jornada física e financeiramente desgastante), Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre se apresenta não só como um relato eficaz e objetivo sobre os conflitos do universo feminino, mas também como um alerta para que os homens que – como eu – não fazem a menor ideia de como é a realidade das mulheres na pele tentem, ao menos, fazer um esforço para entendê-la.