Nunca-Raramente-As-Vezes-Sempre
Nunca Raramente Às Vezes Sempre (1)

Título Original

Never Rarely Sometimes Always

Lançamento

13 de novembro de 2020

Direção

Eliza Hittman

Roteiro

Eliza Hittman

Elenco

Sidney Flanigan, Talia Ryder, Théodore Pellerin, Sharon Van Etten, Ryan Eggold, Kelly Chapman, Kim Rios Lin, Drew Seltzer e Carolina Espiro

Duração

101 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA/Inglaterra

Produção

Adele Romanski e Sara Murphy

Distribuidor

Focus Features

Sinopse

Com uma gravidez indesejada e sem apoio local, Autumn (Sidney Flanigan) e sua prima Skylar (Talia Ryder) embarcam em uma viajam para a cidade de Nova York, em uma jornada cheia de amizade, coragem e compaixão.

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Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre | Crítica

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Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre não seria o filme que é caso fosse dirigido por um homem. Por mais que se esforce, um indivíduo do sexo masculino jamais conseguiria entender na prática como é a realidade feminina e os conflitos que as mulheres encaram no dia a dia em função dos tipos de abuso (velado ou escancarado) que sofrem do início ao fim de suas vidas. O homem pode até ouvir, tentar compreender e demonstrar apoio, mas saber o que é ser julgado por sua vida sexual, aguentar olhares invasivos e cantadas fora de hora, ter suas competências diminuídas em prol de sua aparência física e se desgastar ao correr atrás do que deveria ser um direito… não, um homem não é capaz de saber nada disso. Assim, ao ser dirigido e escrito por uma pessoa que vive e sente na pele o impacto das situações que retrata, o filme se mostra contundente não apenas ao retratar esta realidade, mas também ao convidar o público masculino a um exercício de empatia.

Escrito e dirigido por Eliza Hittman (aliás, a equipe por trás da produção é quase toda feminina), Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre gira em torno de Autumn, uma garota de 17 anos que mora na Pensilvânia e que, ao se descobrir grávida sem ter planejado, decide buscar uma forma de realizar um aborto. O problema é que, em sua terra natal (lembrem-se: diferente do Brasil, os Estados Unidos têm legislações particulares para cada estado), o procedimento só é permito quando autorizado pelos pais da paciente – e, como a família de Autumn se revela fria e incapaz de prestar o mínimo de apoio à menina, esta se vê obrigada a pegar um trem em direção a Nova York, onde o aborto é mais viável, mesmo contando com pouquíssimos dólares na carteira. A “sorte” – se é que há alguma – é que Autumn poderá contar ao menos com a ajuda de uma única familiar: sua prima Skylar, que se dispõe a roubar um dinheirinho do caixa da loja que a emprega e partir na jornada ao lado da protagonista.

Adotando uma atmosfera crua e realista que ajuda a mergulhar o espectador no universo e nos dramas da protagonista, Hittman se preocupa não em empregar os elementos de linguagem que tem à disposição (fotografia, design sonoro, montagem, etc) de forma exibicionista, mas em usá-los objetivamente para mostrar o cotidiano de Autumn e os obstáculos que nele surgem. Neste sentido, a cineasta é hábil ao retratar como uma situação leva à outra, detalhando, no processo, como uma cadeia de eventos acumulados atira a protagonista em uma realidade na qual, por ser mulher, é continuamente condenada por tomar suas próprias escolhas: Autumn é impedida de abordar porque sua gestação passou do período permitido na Pensilvânia (o que depois descobrimos ser mentira); ela deixa de contar aos pais (retratados pelo filme com frieza e distanciamento absolutos) sobre sua gravidez porque teme a reação deles; ao viajar para outra cidade com pouco dinheiro no bolso, ela é obrigada a submeter-se ao absurdo em troca de uns tostõezinhos para depois voltar para casa; e assim por diante.

Não é surpresa, portanto, que o desespero de Autumn a faça adotar uma postura sempre reservada e calada, sendo particularmente fascinante como a estreante Sidney Flanigan (que se tornará uma estrela depois deste filme) retrata o caráter fechado da protagonista através de uma performance que entende que “sutileza” não quer dizer “inexpressividade”, mostrando-se cuidadosa ao transformar a expressão impassiva e a postura discreta da jovem em sintomas de sua realidade – uma realidade que, de tanto parecer que não tem solução, a leva a tomar atitudes dolorosas de se ver, como socar a própria barriga (provocando hematomas) na ânsia de livrar-se daquele feto. Aliás, é revelador que, mesmo quando Autumn enfim está na clínica que deveria acolhê-la, a estrutura sexista do mundo ao seu redor se encarrega de converter o ato em uma sessão de humilhações, obrigado a garota a relembrar os traumas que sofreu e que a levaram até aquela recepção (na longa cena que, aliás, justifica o título do filme e que comprova que a impassividade de Flanigan era não acidental, mas parte de uma performance, já que a atriz logo se revela capaz de ir ao choro e de retratar o desespero de Autumn com uma ênfase excruciante).

Mas Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre vai além, fazendo questão de lembrar, também, como o silenciamento das mulheres, o roubo de seus direitos e o julgamento acerca de suas decisões permitem que a sociedade como um todo sinta-se livre para abusar de seu espaço – e, assim, mesmo pedindo licença do trabalho ao alegar estar doente, Autumn não conta com a compreensão de seu chefe, que insiste em não liberar a garota. Da mesma forma, se a marcha de fundamentalistas cristãos que protestam em frente à clínica de aborto (à la Sara Winter e seus “300 pelo Brasil”) e o moleque que fica dando em cima de Skylar (que, por sinal, é vivida por Talia Ryder com uma lealdade que torna factível seu carinho por Autumn) e posando de bom moço apenas para depois obrigá-la a retribuir com um beijinho podem parecer forçados à primeira vista, logo nos damos conta de que, na verdade, situações assim infelizmente são rotineiras no mundo real (afinal, por mais absurdos que sejam, o assédio, a perseguição e o julgamento moral encontram-se no cotidiano de… bem, de todas as mulheres). Em outras palavras: se estes momentos soam inconvenientes, é porque são mesmo.

Encontrando espaço também para mostrar como a precariedade do sistema de saúde dos Estados Unidos é um problema crônico (ao carecer de um sistema universal e acessível, o sistema de lá pode transformar a busca por um procedimento padrão em uma jornada física e financeiramente desgastante), Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre se apresenta não só como um relato eficaz e objetivo sobre os conflitos do universo feminino, mas também como um alerta para que os homens que – como eu – não fazem a menor ideia de como é a realidade das mulheres na pele tentem, ao menos, fazer um esforço para entendê-la.

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