Quando o personagem de Vincent Cassel aparece pela primeira vez em O Grande Circo Místico, novo longa dirigido pelo veterano Carlos “Cacá” Diegues, somos levados a perceber que o sujeito carrega, entre as pernas, um pênis capaz de intimidar até mesmo Dirk Diggler, interpretado por Mark Wahlberg em Boogie Nights. Depois disso, há um corte que nos redireciona imediatamente para a imagem de uma mulher correndo ao ar livre enquanto, no fundo, ouvimos com clareza o som de um elefante bramindo. Não há como interpretar de outra forma: Diegues criou, através da montagem e do som, uma gag associando o pênis de Vincent Cassel à tromba de um elefante. Das duas, uma: ou isso é simplesmente genial ou é a coisa mais imbecil que vi em 2018.
É uma pena, portanto, que o resto do filme tenha me levado a concordar com a segunda alternativa. Inexplicavelmente escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar (numa decisão quase tão vergonhosa quanto aquela que envolveu Pequeno Segredo, em 2016), O Grande Circo Místico conta com uma premissa ambiciosa e que, só por isso, merecia ser desenvolvida com o mínimo de cuidado pelo roteiro. O que dá para dizer é que a trama começa em 1910 e atravessa cinco gerações até culminar nos dias atuais, acompanhando a trajetória de uma família que é dona do circo que dá título ao filme – e que é liderado por Celavi, um mestre que basicamente cumpre a função de narrador da história e, o mais importante, não envelhece nunca. Por quê? Porque estamos falando do Grande Circo Místico; algo que, diga-se de passagem, mal desempenha um papel significativo na trama, como se o roteiro simplesmente tivesse resolvido enfiar a questão da misticidade de última hora.
Mas antes, é preciso reconhecer que O Grande Circo Místico tem seus méritos: saindo-se bem ao retratar o circo como um ambiente multicolorido e relativamente pequeno, mas que nem por isso deixa de ser extravagante e esplendoroso, a designer de produção Kika Lopes é bem-sucedida ao incluir os aspectos costumeiros em uma atração circense (como o picadeiro, as cordas bambas, os bambolês, os canhões, etc), ao passo que a fotografia de Gustavo Hadba é hábil ao elegantemente contrastar as muitas cores que surgem ao longo da projeção. Por outro lado, isto é o mínimo que se espera de uma produção que carregue a palavra “circo” em seu título” – e se a passagem das décadas é representada de maneira correta através dos cenários, dos figurinos e dos itens cênicos (como as tevês de tubo e os carros pertencentes a cada uma das épocas), o mesmo não pode ser dito a respeito do trabalho de maquiagem, que se limita a alterar os penteados dos atores e a aplicar uma ou duas rugas que jamais soam convincentes (a impressão que fica é de que ninguém parece envelhecer como uma pessoa normal). Além disso, Diegues e Hadba sucumbem à cafonice sempre que vão enfocar os espetáculos que ocorrem no circo, apelando para a câmera lenta constrangedora quando mostram, por exemplo, um leão passando por dentro de um círculo flamejante.
Em outras palavras: Cacá Diegues demonstra ainda compreender as técnicas da linguagem cinematográfica, mas não sabe mais aonde aplicá-las – o que é uma pena, pois estamos falando sobre um diretor que contribuiu para o Cinema Novo (mesmo sem ser um dos melhores cineastas daquele movimento) e ainda comandou, nos anos seguintes, o excelente Bye Bye Brasil (que, não por coincidência, acompanhava o cotidiano de uma família que gerenciava um circo itinerante). Aqui, porém, o homem por trás de Ganga Zumba e Os Herdeiros não demonstra muita ambição estética, entregando-se a uma linguagem que soa mais condizente com uma novela “de época” (daquelas que costumam passar às seis da tarde) do que com o Cinema: notem, por exemplo, como a maioria dos diálogos se resumem a planos e contra-planos básicos, sem revelarem um pingo de sofisticação visual. Ok, existem dois ou três momentos onde Diegues tenta sair da inércia – o problema é que até estes acabam frustrando, já que (mais uma vez) a câmera lenta faz estas passagens se tornarem… bregas.
Oscilando desajeitadamente entre o tom de fábula e o realismo moderado, O Grande Circo Místico é enfraquecido também pela mediocridade do roteiro, que, escrito por George Moura e pelo próprio Cacá Diegues, é composto primordialmente por frases tolas, diálogos esquemáticos e pura exposição – aliás, é importante reconhecer que o elenco se esforça ao máximo para contornar a artificialidade e o excesso de melodrama que estão presentes no roteiro. Mas o pior, contudo, diz respeito à maneira como o roteiro salta entre as épocas e estabelece a estrutura da narrativa: claramente convencido de que está lidando com uma trama muito mais complexa e grandiosa do que realmente é, o filme vai apresentando novos personagens de forma quase aleatória e desaparece com os mesmos assim que julga necessário. Assim, cada etapa da história conta com um protagonista específico, mas este é introduzido e removido quase que ao acaso, permanecendo em tela por pouco tempo (o único personagem que exibe uma presença mais duradoura é o “narrador” Celavi).
Mas o caos narrativo – e a aleatoriedade ao saltar de uma época à outra – não é o maior problema de O Grande Circo Místico, que expõe uma visão questionável (para dizer o mínimo) ao desenvolver e ao enfocar suas personagens femininas: já demonstrando um olhar objetificador ainda numa das primeiras sequências que trazem Bruna Linzmeyer em cena (quando ela transa fazendo malabarismos), Cacá Diegues exibe um olhar explorador em praticamente todas as cenas que envolvem a performance de alguma moça no palco. Além disso, existem momentos que se revelam particularmente incômodos ao mostrarem mulheres sofrendo na hora do sexo, sendo jogadas agressivamente contra uma parede e recebendo a culpa de um erro cometido que um homem cometido (quando o personagem de Juliano Cazarré percebe que fez algo incorreto, ele imediatamente deposita a responsabilidade na conta de uma jovem que mal havia conhecido).
O que nos traz, por fim, à Margarete vivida por Mariana Ximenes – e caso você ainda não tenha assistido ao filme, pare de ler este texto agora, pois terei que comentar um aspecto revelador demais (sim, um spoiler!). No terceiro ato, quando a personagem é estuprada por um grandalhão que trabalha no circo, isto acaba servindo para evoluir seu arco dramático. (Pausa para respirar fundo…) Não que seja impossível lidar com uma questão grave como esta – existem vários exemplos de filmes que sabem falar sobre estupro de maneira polêmica sem que soem irresponsáveis. Agora, não dá para me fazer acreditar em qualquer moralidade que possa haver em um “estupro redentor” depois de Cacá Diegues passar uma hora e meia objetificando os corpos de suas atrizes de forma tão descarada. Aí, não dá.
Com isso, o que posso dizer sobre este longa é que Cacá Diegues parece ter perdido a capacidade de contar uma história minimamente coesa ou organizada, falhando miseravelmente em aplicar os talentos que demonstrou ter no passado e – o pior – soando como um realizador que simplesmente parou no tempo. O resultado disso não poderia ser diferente: O Grande Circo Místico é uma obra difícil de engolir.
E quando o melhor que um filme tem a oferecer é uma piada (construída, de novo, através da montagem e do som) relacionando o tamanho de um pênis à tromba de um elefante, é porque algo deixou a desejar. Só sei que este “algo” não é Vincent Cassel.